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"Fidelidade à grande mentira": como o modelo aprendido pelo clã Bolsonaro ameaça democracia dos EUA

24/10/2022 15h50

Não é só o Brasil que continua a enfrentar em 2022 as "fake news" nas eleições. Nos Estados Unidos, o movimento iniciado pelo republicano Donald Trump, que serviu de escola para o clã de Jair Bolsonaro, continua dividindo famílias a ponto de ameaçar uma das democracias que já esteve entre as mais vigorosas do mundo.

A enxurrada de notícias falsas que inundou as eleições deste ano no Brasil evidenciou a impotência dos órgãos de fiscalização diante da rápida disseminação de informações nas redes sociais. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, na semana passada, mudar as regras para o segundo turno. A corte já está exigindo a retirada de conteúdo falso dos candidatos em até duas horas e sem necessidade de ação judicial, se um assunto semelhante já tiver sido alvo de deliberação jurídica.

A campanha para as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos, em 8 de novembro, continuam marcadas pelo "negacionismo eleitoral" que se espalhou no país - das Assembleias Legislativas estaduais às prefeituras, bares e famílias -, levando o corpo político ao adoecimento e ameaçando a democracia.

Do Pacífico à Costa Leste dos Estados Unidos, republicanos de vários matizes aderem à afirmação falsa defendida e propagandeada pelo ex-presidente Donald Trump, no pode de 2017 a 2021, de que a eleição de 2020 foi roubada e que a fraude eleitoral está amplamente disseminada no país.

O "think tank" Brookings Institution, com sede em Washington, D.C., identificou 249 desses chamados "negacionistas eleitorais", todos republicanos, nas 567 corridas eleitorais para candidatos à Câmara de Representantes (deputados), Senado e importantes cargos no nível estadual.

O presidente da Bayer Strategic Consulting e ex-diretor de pessoal do Senado americano, Mark Bayer, disse à AFP que a democracia no país corre o "maior risco de desmoronar" desde a Segunda Guerra Mundial.

Fidelidade à mentira é incitada por interesse pessoal

"A fidelidade à 'grande mentira' foi o maior tema de campanha para muitos dos negacionistas que disputam as eleições. Como esses candidatos poderiam responder, ao perder suas próprias eleições de forma justa em novembro?", questiona Bayer.

Ninguém apresentou provas de uma fraude significativa nas eleições de 2020, mas a enxurrada de desinformação divulgada por Trump e por seus aliados convenceu parte do país de que o democrata Joe Biden não é o presidente legítimo. Muitos dos seguidores de Trump, como Terri Privett, um republicano entrevistado pela AFP em um recente ato político em Vero Beach, no estado da Flórida (sudeste), deixaram-se convencer pela falácia de que as grandes multidões que continuam a seguir Trump, se comparadas às de Biden, provam que houve fraude.

Negacionismo eleitoral e erosão da democracia 

Trump, que apoiou mais de 200 republicanos em suas candidaturas às eleições de novembro, fez da crença em sua "grande mentira" uma condição para endossá-los.

"As análises políticas indicam que a maioria das democracias não termina com uma revolução, ou com um golpe militar, mas é erodida por dentro", afirma Barbara Wejnert, socióloga política de renome internacional e professora da Universidade de Buffalo, em Nova York.

"E esse pode ser o caso da democracia americana, se os negacionistas eleitorais forem eleitos, assim como se Trump se tornar presidente de novo", acrescenta.

Nada disso importaria se os candidatos polêmicos fossem ignorados. Mas seu protagonismo no "mainstream" do partido faz soar todos os alarmes, de acordo com ativistas.

Brookings estima que 145 dos 249 negacionistas eleitorais, ou seja, 58% do total, parecem ter grandes chances de vencer em suas respectivas disputas. Alegando temerem pela democracia, quase metade deles são membros da Câmara que votaram para impedir a certificação do resultado das urnas em 2020 - apesar da ausência de provas de fraude.

Em relação à luta pela democracia, as disputas mais importantes acontecem em 39 estados para eleger governadores, procuradores-gerais, ou secretários de Estado. Esses funcionários administram as eleições, supervisionam a contagem de votos e certificam os resultados, o que faz deles a primeira linha de defesa da democracia.

O grupo de lobby States United Action estima que 58% da população, que vive em 29 estados americanos, tem um negacionista eleitoral concorrendo para ser o supervisor de suas próximas eleições.

'A democracia é frágil'

A professora Ann Crigler, da Universidade do Sul da Califórnia, que escreveu extensivamente sobre política e meios de comunicação, ecoa temores de que, diante de um eventual fracasso eleitoral, os negacionistas possam tentar questionar os resultados.

Para ela, são os vencedores que representam um problema maior, pois estariam em posições de poder para mudar regras eleitorais e dar vantagem a seus candidatos preferidos.

"A democracia é frágil e vulnerável à corrupção, se não contar com participantes honestos e vigilantes no processo de votação e de governo", explicou Crigler à AFP.

Além disso, o maior número de candidatos negacionistas está na Pensilvânia, Arizona, Michigan, Flórida, Texas, Wisconsin e Geórgia, todos estados-chave que, invariavelmente, decidem quem controla o Congresso e a Casa Branca.

"Inventar as coisas, ou negar os fatos, é fundamentalmente antidemocrático. Em resumo, ao negar o que as evidências dizem, os próprios fundamentos da nossa democracia são postos em risco", disse o reitor da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade Vanderbilt, John Geer.

Bannon: referência para ativismo bolsonarista

Na última sexta-feira (21), Steve Bannon, ex-assessor de Trump, foi condenado a quatro meses de prisão por se recusar a depor na investigação do Congresso sobre o ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, por parte de partidários do ex-presidente republicano. A violenta invasão do Congresso deixou cinco mortos e 140 policiais feridos.

Um dos arquitetos da campanha e da vitória presidencial de Trump em 2016, Bannon foi declarado culpado de duas acusações de desacato ao Congresso por desafiar uma intimação para depor sobre o caso.

Bannon se tornou referência para o bolsonarismo e inspirou a tática de ativismo digital à brasileira na eleição de 2018. A máquina da desinformação se aperfeiçoou e continua em plena ação na atual campanha no Brasil. Em diversas ocasiões, o deputado federal Eduardo Bolsonaro exibiu em suas redes sociais imagens ao lado de Bannon, embora o americano tenha sempre negado ter prestado serviços pagos à família, "apenas consultoria informal".  

Recurso contra condenação

O juiz que emitiu a sentença no tribunal de Washington permitiu que Bannon, que também foi multado em US$ 6.500, permanecesse em liberdade enquanto recorre da decisão, em um processo que seu advogado qualifica como "à prova de balas".

O estrategista de Trump adotou um tom desafiador ao sair do tribunal federal, atacando o presidente Joe Biden e os líderes democratas da Câmara de Representantes.

"Hoje foi dia do meu julgamento perante o juiz", disse Bannon a jornalistas. "Em 8 de novembro será julgado o regime ilegítimo de Biden", afirmou, em alusão às eleições de meio de mandato. "E sabemos em que direção isso vai. O governo Biden termina na noite de 8 de novembro", afirmou.

Em 2020, Bannon foi acusado de fraude eletrônica e lavagem de dinheiro por tomar para seu uso pessoal milhões de dólares doados para a construção de um muro na fronteira com o México, uma promessa de campanha de Trump. Mas, antes de deixar o cargo em janeiro de 2021, Trump lhe concedeu um indulto geral, o que levou à desistência de acusações contra ele.

Na sexta-feira, o comitê de investigação do Congresso intimou formalmente o ex-presidente republicano a depor a partir de 14 de novembro. Além disso, determinaram que ele entregasse, antes de 4 de novembro, uma série de documentos, entre eles um relatório de todas as suas comunicações em 6 de janeiro de 2021.

"Como qualquer pedido deste tipo, vamos revisá-la e avaliá-la, e responderemos adequadamente a esta ação sem precedentes", comentou David Warrington, um dos advogados de Trump neste caso.

RFI e AFP