Argentina vive noite de terror, com comércios saqueados e violência
Episódios de roubos e vandalismo se multiplicaram durante as últimas horas, recordando a onda de saques de dezembro de 2001. Os ataques começaram pelo interior do país, no final de semana, e chegaram à periferia de Buenos Aires nas últimas horas. O governo acusa o candidato da extrema-direita à presidência e a tensão social chega à campanha eleitoral, enquanto a população convive com o medo e com uma inflação galopante, que deve fechar o ano acima de 150%.
Após um fim de semana de roubos a comércios e de violência pelo interior do país, a onda de saques a supermercados e lojas chegou à periferia de Buenos Aires, alastrando-se de maneira veloz sobre um terreno fértil de aumento da pobreza a cada nova remarcação de preços.
Durante a noite e a madrugada, 56 pessoas foram presas em mais de dez saques a supermercados, em pelo menos oito municípios ao redor de Buenos Aires. O número de presos é ínfimo diante das várias dezenas que se juntam para atacar o comércio na modalidade conhecida na Argentina como "ataque piranha", em referência ao cardume voraz, que devora as vítimas em poucos segundos.
"Esta noite, à última hora, quando os comércios começaram a fechar, houve várias tentativas de roubos, de forma coordenada, a vários supermercados e lojas. Fazem uma maciça campanha através das redes sociais, incitando aos saques. Nos roubos, usam menores para roubar cigarros e bebidas alcoólicas", explicou Sergio Berni, secretário de Segurança da Província de Buenos Aires.
Ao longo da madrugada, quatro helicópteros sobrevoaram os pontos mais conflituosos da área metropolitana de Buenos Aires. Em terra, grupos de apoio da polícia procuravam antecipar-se aos roubos.
Um dos saques mais violentos foi no município de Moreno. Cerca de 50 pessoas, incluindo crianças, cercaram o supermercado Conquista, que fechou as portas metálicas. Primeiro, atearam fogo num depósito de botijões de gás, ação que por pouco não transforma o saque numa tragédia. Depois, forçaram o portão de ferro até derrubá-lo. Por último, retorceram as portas metálicas. O dono do supermercado recebeu uma pedrada no rosto.
"Primeiro, roubaram bebidas alcoólicas, depois eletrodomésticos, computadores e geladeiras. Por último, os alimentos. Os que roubaram são os mesmos moradores da vizinhança que vêm aqui comprar. Chegaram a virar o rosto quando me viram", descreveu Johana, caixa do supermercado.
"Eu vi a ameaça num grupo de Facebook, mas não acreditei. Depois, recebi uma mensagem num grupo de WhatsApp. A polícia passou, mas não fez nada", conta a moradora Alejandra Castillo.
Em Moreno, outro supermercado da rede Arco foi alvo de uma tentativa de saque, dessa vez impedida pela polícia. Na mesma cidade, uma loja de roupas sofreu um "roubo piranha" em 50 segundos, tempo suficiente para que 15 jovens levassem várias peças. Na imagem da loja, a vendedora se refugia atrás do balcão, enquanto a loja é depenada. Um jovem de 19 anos foi preso.
Supermercados como alvo
A rede espanhola de supermercados Dia foi um dos principais alvos. Em três municípios (Escobar, Don Torcuato e José C. Paz), muitas pessoas conseguiram entrar nas filiais, embora os funcionários já tivessem fechado as portas, alertados pelos movimentos.
Nas imagens dos roubos, filmadas por moradores estupefatos, é possível ver crianças e adolescentes, carregando bebidas alcoólicas. A imensa maioria é de jovens e as mercadorias menos visadas são os alimentos.
"Em Escobar, houve seis presos, quatro deles menores entre 12 e 15 anos. Os outros dois mal passam dos 18 anos", afirmou o prefeito de Escobar, Ariel Sujarchuck.
Em Don Torcuato, 40 pessoas, na maioria mulheres e adolescentes, conseguiram entrar no supermercado, mas a polícia conseguiu conter a ação.
Em José C. Paz foram cerca de 80 pessoas que roubaram e destruíram o supermercado. Além de produtos, roubaram dinheiro dos caixas. Nas imagens, mulheres saem com carrinhos abarrotados de mercadorias.
"As portas do supermercado já estavam fechadas porque havia rumores de possíveis saques. Mesmo assim, derrubaram e entraram, provocando destruição. Quando a polícia chegou, foi atacada com garrafas e pedras. Foi preciso chamar muitos reforços. Roubaram tudo. Quatro pessoas foram presas", detalhou a juíza Gabriela Persichini, suspeitando da forma como tudo aconteceu.
"Não é normal que num roubo haja 80 pessoas à espera para entrar num supermercado", destacou a magistrada.
Em Ciudadela, em Morón e em Malvinas Argentinas, houve saques a supermercados. Em Loma Hermosa, as imagens mostram o dono de uma loja e dois funcionários recebendo os invasores a tiros de escopeta.
Em Mar del Plata, enquanto o prefeito Guillermo Montenegro anunciava uma operação policial, deflagrada a partir de áudios de WhatsApp que antecipavam saques a comércios, um grupo de 40 pessoas tentava saquear um supermercado durante a noite. Os donos evitaram o roubo ao fecharem as portas a tempo. Os revoltosos destruíram parte da fachada, mas não conseguiram entrar.
Incitação ao saque
Os saques são coordenados através de grupos de Facebook e, principalmente, de WhatsApp. A partir de perfis falsos, mensagens de agitação são enviadas, incitando os integrantes a participarem de determinado ataque.
Na cidade de Buenos Aires, na noite de segunda-feira (21), um grupo de moradores de uma favela no bairro de Flores atacou a paus e pedras os delinquentes que entraram para roubar um comércio. Nessa área, a mais perigosa da capital argentina, a polícia do Exército faz a patrulha há dois meses e a vizinhança usa um sistema de alarme que avisa a comunidade sobre possíveis ataques. Uma pessoa foi presa.
Durante toda a terça-feira (22), as redes sociais tornaram-se uma usina de rumores, levando comerciantes de bairros como Flores e Once a fecharem as suas lojas como prevenção a um ataque que não se concretizou.
Os saques começaram durante o fim-de-semana em Mendoza, onde, no sábado, 18 pessoas foram presas depois de ataques maciços a comércios nas cidades de Las Heras e de Rivadavia, no interior da província. Na segunda-feira, outras 10 pessoas foram presas ao tentarem entrar num supermercado da cidade de Tunuyán, também em Mendoza.
Na Patagônia, na cidade de Cutral Co, província de Neuquén, um supermercado da rede La Anónima foi saqueado. Seis pessoas foram presas. Na cidade de Neuquén, capital da mesma província, uma pessoa também foi presa durante um ataque a outro supermercado.
Os saques na província de Córdoba começaram pela cidade de Río Cuarto, onde 15 pessoas foram presas ao tentarem saquear um supermercado no domingo. Na madrugada de terça-feira, os saques chegaram à capital, Córdoba, até agora a cidade com mais ataques registrados: 12 comércios saqueados e 23 presos.
Roubos entram na campanha eleitoral
Para o governo, um dos principais motores para incentivar os saques é o candidato da extrema-direita à presidência, Javier Milei, que lidera as sondagens para as eleições de 22 de outubro.
A porta-voz da presidência, Gabriela Cerruti, garantiu que o partido de Milei, "A Liberdade Avança", opera nas redes sociais com o objetivo de desestabilizar o governo.
"As contas que incitam são todas vinculadas ao A Liberdade Avança. É uma operação armada pela gente do Javier Milei que tem como objetivo gerar uma desestabilização", acusou Cerruti.
O candidato Javier Milei fez uma comparação entre o atual momento da Argentina e aquele vivido em dezembro de 2001, quando o país teve um colapso socioeconômico e político, com dias de saques prévios à queda do então governo do presidente Fernando de la Rúa.
"É trágico voltar a ver, depois de 20 anos, as mesmas imagens de saques que víamos em 2001. Pobreza e saques são duas caras da mesma moeda. A Argentina não resiste mais a esse modelo empobrecedor", criticou Milei.
Para a candidata Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança e segunda nas sondagens, "se o governo perder totalmente o controle, deve decretar o estado de sítio".
Há uma semana, o governo desvalorizou a moeda em 22%, levando os comerciantes a aumentarem os preços em torno de 30% e fazendo os economistas calcularem uma inflação em agosto e em setembro acima de 12%. As projeções mais conservadoras calculam em 150% a inflação de 2023, enquanto as mais pessimistas já situam em torno de 200%.
"A delicada situação econômica e social pela qual a Argentina atravessa não justifica, de modo algum, que sejam cometidos delitos, ainda mais quando a motivação de muitos não é a necessidade, mas a mera vocação de gerar temor e desordem", indicou em nota a Câmara Argentina de Comércio (CAC).