Festival de Avignon destaca teatro de resistência e lança evento contra extrema direita na França

Cerca de 1.700 espetáculos. Um total de 25 mil apresentações, em 150 teatros e espaços cênicos. 1320 companhias de teatro, sendo cerca de 160 delas estrangeiras e cerca de 115 mil espectadores na mostra oficial, e mais de 2 milhões de ingressos vendidos no OFF. O Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues, abriu as portas no último dia 29 de junho, mantendo o foco no engajamento político com uma incrível pluralidade de vozes teatrais, no maior evento de artes cênicas do mundo.

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Quem abriu o baile em 2024 na prestigiosa Cour d'Honneur do Palacio do Papas, vitrine principal do Festival de Avignon, foi a encenadora espanhola Angélica Liddell, com Dämon, peça que homenageia Ingmar Bergman, trazendo toda a fúria do verbo da espanhola, um verdadeiro convite à rebelião. 

"Descobri Bergman ainda muito jovem na televisão pública espanhola, numa época em que esse tipo de mídia pública ainda era interessante na Espanha, eu devo meu imaginário e minha educação estética a ele e a outros cineastas, e desde pequena percebi que Bergman tinha conseguido colocar palavras para nomear meus sentimentos, e isso me nutriu espiritualmente e esteticamente", contou a performer espanhola, uma veterana do festival.

"Para mim, este testamento de Bergman sobre como deveria ser seu funeral é seu último grande ato estético. Toda rebelião passa pela estética, e não pela mensagem. Efetivamente, essa descrição de Bergman de seu funeral é sua última grande obra, uma escolha estética formidável, e que nos coloca em contato com o grande demônio da vaidade", detalha a diretora, uma provocadora por excelência.

"Arte é coisa de artistas"

Um dos alvos de Angélica Liddell na peça é, assim como Ingmar Bergman, os críticos. "Compartilho com ele esse ódio aos críticos. Minha obra é uma bofetada, que não posso dar fisicamente porque me denunciariam. Mas eu gostaria de confrontar toda essa gente que me insultou banal e impunemente, cara a cara, e dar-lhes uma bofetada. A arte é coisa de artistas, os críticos são arcaicos e chegam a ser, em determinado momento, uma coisa daninha para a arte", disparou Lidell.

O coreógrafo francês Boris Charmatz, hoje à frente da companhia de Pina Bausch, na Alemanha, falou sua participação como artista-cúmplice da edição 2024 do Festival de Avignon. "Essa cumplicidade está ligada a esta direção do festival de Tiago Rodrigues e sua equipe, e nasceu no momento em que Tiago se mudava para Avignon, enquanto cidadão português, convidado a assumir um posto importante na França, e eu chegava a Wuppertal, na Alemanha", declarou.

"Não se trata de um exílio, mas de se juntar a instituições muito vivas, mas, ao mesmo tempo, cheias de histórias, lendas e mitos. Essa cumplicidade nasceu então desse entrelaçamento entre passado, presente e futuro, uma vez que estamos aqui para inventar, improvisar e talvez desenhar caminhos de esperança nestas narrativas de fim do mundo que nos angustiam a todos", disse Charmatz, que apresentou Cercles, com foco no "círculo", um formato cênico que sempre assombrou a memória da dança, seja ela tradicional ou moderna, clássica ou contemporânea. 

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Já o diretor do festival, Tiago Rodrigues, explicou a escolha de revisitar uma tragédia de Eurípides em Hécuba, não Hécuba, espetáculo que estreou no Festival de Avignon 2024. "Eurípides é o trágico mais progressista, aquele que coloca em questão o divino, transforma o divino em simbólico e responsabiliza os humanos por suas escolhas", diz o diretor.

"Ele introduz hesitação e uma quase psicologia nos diálogos, e sobretudo continua uma linhagem de Ésquilo e de Sófocles de olhar para o 'outro', seja o estrangeiro, seja a mulher - porque em Atenas, há 2.500 anos, a mulher era o 'outro', e não tinha acesso à tragédia, seja no palco, seja na plateia", sublinhou.

"O que ele nos propõe é algo fundamental hoje, falando de lei, falando de justiça, de vingança. Hécuba, rainha de Troia, agora transformada em escrava, uma mulher estrangeira, uma troiana, que perdeu a guerra contra os gregos, uma escrava, mais velha, e zangada, quer justiça para seu filho, morto sob a proteção de um suposto aliado", destacou Rodrigues. "Ela é madura, não é aquela heroína trágica jovem como Ifigênia ou Antígona, idealizada", aponta o diretor.

"Uma mulher ferida que exige justiça, Hécuba também é um símbolo político. Essa dimensão sempre me fascinou e atinge seu clímax em uma peça sobre a aceitação da vulnerabilidade pela sociedade", diz o diretor, na apresentação da peça. "Quando um artista diz Shakespeare ou Molière, ele está reescrevendo ou traduzindo Shakespeare, ou Molière. É um exercício de imaginação. A vida dos artistas de teatro é repleta de experiências. Há uma porosidade entre atores e atrizes, suas vidas e suas interpretações das palavras que interpretam", acredita Rodrigues.

Contra a extrema direita

Inspirado também por esse pacto euripidiano, o diretor Tiago Rodrigues irrompeu a cena da Carrière de Boulbon, nos arredores de Avignon, depois da estreia de Hécube, pas Hécube, no dia 30 de junho, após ser confirmada a vitória da coligação comandada por Marine Le Pen e Jodan Bardella nas eleições legislativas antecipadas da França, para convocar a coletividade presente a participar do evento La nuit d'Avignon (A noite de Avignon), uma iniciativa cidadã do festival para lutar contra "a ameaça da extrema direita" no país.

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"Fiel a seus valores fundadores, e convencido que outro projeto de sociedade progressista, popular, democrática, republicana, feminista, ecologista e antirracista é desejável, o Festival de Avignon, convocando o público a se unir à Noite de Avignon, deseja encarnar o lugar vital do debate social e político", diz o texto do evento, que acontecerá a portas abertas e gratuitamente nos dias 4 e 5 de julho no Palácio dos Papas, vitrine principal do festival, com a presença de vários artistas convidados.

Festival de Avignon 2024 fica em cartaz no sul da França até o dia 21 de julho.

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