Venezuela vira desafio interno e externo para governo Lula, dizem especialistas

Analistas ouvidos pela RFI afirmam que cautela na abordagem é necessária inclusive para que Brasil possa avançar na intermediação em caso de escalada da violência no país vizinho. Mas ponderação não é consenso no meio acadêmico nem político e há quem defenda postura mais firme de Lula na denúncia contra a falta de transparência e lisura do pleito.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

A Venezuela já teve um peso maior na economia da América Latina, mas o país ainda é relevante especialmente pelo petróleo e pela geopolítica amazônica. No caso do Brasil, a polarização e a aliança ampla que elegeu o presidente Lula alçaram a contestada reeleição de Nicolas Maduro à posição de assunto decisivo na política interna.

"Essa situação atual é só a ponta do iceberg de um grande desafio para o atual governo. Basta recordar a declaração recente da ministra do meio ambiente, Marina Silva, que não considera a Venezuela uma democracia", disse à RFI a especialista em relações internacionais Carolina Pedroso, da Unifesp.

"Já o Partido dos Trabalhadores, que é o partido do presidente Lula, declarou apoio e considera que a eleição foi um processo normal e democrático. É um tema que mobiliza os diferentes grupos e traz problemas até dentro do próprio governo", analisa.

Saindo da questão doméstica em direção ao plano internacional, Pedroso avalia que a "Venezuela é um epicentro de problemas para a região, seja pela questão econômica, seja pela questão política, mas, principalmente, pela questão migratória", completou.

A analista aponta como bem-vinda a cautela com que o governo brasileiro tem tratado o assunto, ainda mais num contexto regional de intermediação, onde busca ajuda de países como México e Colômbia, inclusive para o caso de agravamento da crise no país vizinho. Nos últimos dias houve uma escalada de violência com protestos na rua, perseguição e prisão de opositores de Maduro.

Postura de cautela típica do Brasil

Na mesma linha, o analista da PUC/SP, Arthur Murta, considera que é preciso diferenciar situações que exigem um posicionamento imediato do governo de outras que carecem de uma avaliação mais detalhada do cenário.

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"Eu acho que a gente vive hoje um período em que se espera posicionamento veloz para tudo. Às vezes isso é de fato necessário, como foi o caso recente da tentativa de golpe na Bolívia, quando os governos da região rapidamente se colocaram contra aquilo. Mas em outros casos o posicionamento dos países leva mais tempo, até para que sejam analisadas as inúmeras variáveis", afirmou Murta.

Quanto ao pisar em ovos de Lula sobre o assunto, o professor disse que essa postura de cautela é típica da política externa brasileira e já era esperada também nesse caso.

"Tanto que o governo dos Estados Unidos parabenizou os esforços conciliatórios do Brasil. Agora, um endurecimento das sanções, um não reconhecimento da reeleição e o Maduro seguindo no poder, isso vai trazer muitos problemas e um desbalanço nesse cenário comercial da região", destacou Murta.

Embaixada da Argentina

Para os especialistas, a questão envolvendo a embaixada da Argentina em Caracas, que ficará sob guarda do Brasil, evidencia que assegurar interlocução com os pares regionais é importante para estabilizar crises, mesmo em se tratando de governos de lados bem diferentes, como o de Lula e o de Javier Milei.

"A situação na embaixada argentina mostra que mesmo em momentos de maior distanciamento é possível existir cooperação entre os corpos diplomáticos, sobretudo pela relação histórica entre os dois países e as suas conexões políticas, econômicas e sociais", explicou Marcela Franzoni, professora de relações internacionais das Belas Artes, referindo-se a Brasil e Argentina.

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"A posição do Brasil também pode ser entendida pelo viés humanitário da política externa na proteção e concessão de asilo. Já do ponto de vista regional latino-americano, é possível dizer que houve um racha no que se refere ao reconhecimento de Maduro como vencedor das eleições, o que reflete um pouco o atual nível de discordância entre os países da região", completou Franzoni.

Maduro também expulsou diplomatas de outros países, como Peru, Chile e Uruguai, que a exemplo do governo de Milei podem acionar o Brasil, inclusive para lidar com pessoas que têm pedido asilo nessas embaixadas. Mas a postura mais cautelosa não é unanimidade entre políticos nem analistas.

O especialista em assuntos internacionais José Niemeyer, do IBMEC, por exemplo, acha que o Brasil precisa endurecer o discurso contra Maduro, até como forma de se apresentar como liderança mundial.

"Existem sim rusgas diplomáticas e também no campo interno, mas reitero que o presidente Lula deveria, em primeiro lugar, se posicionar como chefe de Estado e aí criticar, em tudo que tem que ser criticado, o processo eleitoral venezuelano", diz.

Niemeyer ressaltou a importância geopolítica da Venezuela para o Brasil, com os dois países abrigando, por exemplo, o território Yanomami. "Mas não é porque a Venezuela é um espaço vital, é uma região sensível, que o Brasil deve fazer vista grossa aos absurdos que estão acontecendo por lá do ponto de vista da política institucional. Porque desde Chaves e durante o governo Maduro, as estruturas do Estado venezuelano foram sequestradas pelo grupo que chegou ao poder e tenta se manter a todo custo", afirmou o professor.

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