Feminista, refugiada e medalhista paralímpica: a atleta afegã que desafia tabus e talibãs na França
"Eu me considero feminista, defendo os direitos das mulheres", declara com a calma habitual a medalhista de bronze paralímpica afegã Zakia Khudadadi, 25 anos, há três refugiada na França, país que não só a acolheu, mas que também a resgatou do regime talibã, assim como seus familiares. Nascida com apenas um braço numa família de uma minoria xiita perseguida no Afeganistão, seu destino era um casamento forçado. A atleta superou não apenas preconceitos múltiplos, mas ameaças de morte constantes.
Foi com um pedido de socorro desesperado, postado nas redes sociais, que a jovem atleta afegã Zakia Khudadadi, então com 22 anos, conseguiu chamar a atenção das autoridades francesas, que a resgataram da crescente intimidação causada pelo recrudescimento misógino do regime talibã em torno da sharia, a inflexível lei muçulmana que alguns juristas afegãos consideram como a "emanação da vontade divina". Uma política moralista de falso cunho religioso, contestada por especialistas do mundo inteiro, que já foi classificada pela ONU como "apartheid de gênero". "No dia em que o Talibã entrou em Cabul, meu treinador veio me ver imediatamente e disse: Zakia, está tudo acabado para você", contou a atleta.
Na ocasião e com a ajuda das redes sociais, Zakia implorou por ajuda "enquanto mulher afegã". "Meu objetivo é participar dos jogos paralímpicos de Tóquio. Por favor, me deem a mão, me ajudem", pediu. Impedida de treinar, e "prisioneira dentro de casa", Khudadadi se angustiava então com o cerco exponencial do autoproclamado "Código de Virtude e Prevenção ao Vício" imposto pelos talibãs, que preconiza, em sua versão 2024, que mulheres não devem recitar o Corão ou cantar, e que sua saída de casa deve ter uma necessidade específica comprovada por um inspetor da polícia moral afegã.
"Eles certamente te matarão se te encontrarem. De agora em diante, eu não a conheço e você não me conhece", disse o treinador da jovem afegã à sua atleta. Khudadadi se viu sem solução e precisou deixar a Federação Afegã de Taekwondo.
A súplica foi ouvida a mais de 5.000 km de distância, mais precisamente pela franco-iraniana Fahimeh Robiolle, instrutora de gerenciamento de conflitos e vice-presidente do instituto França-Afeganistão, que se comprometeu a ajudá-la a deixar o Afeganistão. Quarenta e duas horas depois da publicação do vídeo, Khudadadi abandonava seu país, a partir do aeroporto de Cabul, um 17 de agosto de 2021 que ela considera "triste e inesquecível". "Havia muitas crianças e mulheres em todas as portas do aeroporto, foi muito difícil para mim", afirmou.
Recepcionada na França pelo Insep, o centro de excelência e de alto rendimento para atletas olímpicos e paralímpicos da França, a jovem afegã continuou fazendo bonito e conquistando medalhas, como o título de campeã europeia de para-taekwondo, que ela foi buscar na raça em Roterdã, na Holanda, em agosto de 2023.
Mas Zakia Khudadadi sabe que, além de pontuar alto nas competições, existe um outro critério importante para que ela possa obter a nacionalidade francesa e realizar mais um de seus sonhos - competir sob a bandeira tricolor em Los Angeles, em 2028.
Para isso, ela precisa dominar o francês. É, portanto, com a mesma disciplina que segue suas rotinas com a treinadora e ex-campeã mundial de taekwondo francesa, Haby Niaré, que a atleta acompanha semanalmente quatro aulas do idioma, cursos divididos entre escrita e sessões orais onde ela exerce a fluidez recém adquirida na língua de Molière.
Esta medalha é para as afegãs e para todas as mulheres do mundo que são discriminadas...
Os resultados são visíveis: após a conquista inédita do bronze no Grand Palais de Paris, em 29 de agosto, a atleta afegã concedeu entrevistas em francês sem ajuda de tradutores. A emoção não atropelou o sotaque, agora bem mais fluido, e, após a conquista, seus olhos se voltaram inevitavelmente para seu país, para as meninas e mulheres do Afeganistão.
"Esta medalha é para elas e para todas as mulheres do mundo que são discriminadas", declarou Khudadadi, que compete na categoria até 47 quilos. Ao ganhar o bronze, a jovem taekwondista trouxe para casa a primeira medalha da história para a equipe de refugiados paralímpicos. Mais um título conquistado, mais um tabu quebrado.
O público francês a prestigiou em todos os seus combates. Quando ela subiu ao tatame para sua luta de abertura, a multidão explodiu e não parou de aplaudir. As pessoas seguravam cartazes dizendo "Zakia", enquanto outras seguravam uma grande bandeira dos Agitos, o logotipo paralímpico com o qual os atletas da Equipe Paralímpica de Refugiados competem.
Embora tenha perdido para Ziyodakhon Isakova, do Uzbequistão, nas quartas de final, Khudadadi venceu sua luta de repescagem contra Nurcihan Ekinci, da Turquia, saindo em desvantagem até virar e vencer por 9 a 1. Ela garantiu sua primeira medalha após a desistência de sua adversária na disputa pela medalha de bronze.
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Quero receberIcônica, essa afegã peso pena carrega em seus ombros muitas bandeiras, todas elas essenciais para o crescente público que a acompanha: deficiente, mulher, de uma minoria xiita - hazara, atleta medalhista e refugiada.
Fahimeh Robiolle, uma professora franco-iraniana especializada no Afeganistão, que possibilitou que Khudadadi e sua família viessem para a França, não escondeu a admiração durante a conquista da medalha inédita: "O que Zakia fez é extraordinário, pelas mulheres, pelo Afeganistão, ela é uma ótima pessoa, além de tudo. Khudadadi é uma luz na noite de Paris, na cidade-luz, dizendo que outra vida é possível, mesmo se somos deficientes. Um símbolo e ícone na língua de Molière", disse, emocionada após o bronze da afegã.
Ao microfone da RFI, a medalhista não escondeu a alegria, no seu já compreensível e emocionado francês: "Era para mostrar a força das meninas e das mulheres afegãs, e nós ganhamos! Estamos aqui com a medalha para combater o talibã em meu país. Somos incríveis", gritou, comemorando, ainda no tatame. "Foi genial, um dream (sonho, em inglês). Desde a minha chegada na França do Afeganistão, há três anos, esse era o objetivo, ganhar uma medalha para mostrar a força das meninas afegãs, dos refugiados, porque viemos todos de uma guerra nesse mundo. Essa é uma data que eu jamais esquecerei na minha vida", afirmou.
Khudadadi começou a praticar esportes paralímpicos quando tinha nove anos de idade com o objetivo de competir nos Jogos Paralímpicos. Ela fez sua estreia em Tóquio 2020 apenas alguns dias depois de escapar de seu país natal. A atleta já disse em diversas ocasiões que associa Tóquio 2020 a lembranças tristes. Depois de começar uma nova vida na França, ela diz que também teve que enfrentar alguns desafios.
"Quando me tornei uma refugiada em Paris, tentei me tornar mais forte do que antes. Esses dois anos foram a prova de que podemos fazer o que quisermos, apesar das dificuldades", disse Khudadadi no início da competição internacional que acaba de consagrá-la como um dos símbolos do esporte paralímpico.
"Quando vivia no Afeganistão, eu enfrentava uma situação muito difícil. Eu buscava uma maneira de transformar minha deficiência em força, então comecei a praticar esportes. Nenhuma mulher ou menina com deficiência jamais se atreveu a praticar esportes lá", contou Zakia Khudadadi em uma entrevista em junho deste ano ao site da ONU Mulheres. "Elas têm medo da sociedade e de como os homens reagirão. Fui a primeira mulher a praticar esporte na província de Herat, no Afeganistão, e continuei a fazê-lo até o nível internacional, apesar de todas as condições, restrições e violência", afirmou a atleta, que começou a treinar em segredo absoluto.
"Comecei meu treinamento escondida com um treinador na cidade de Herat, em uma sala de 9 m², sem instalações apropriadas. Ao praticar esportes, eu queria quebrar barreiras e superar as restrições que me mantinham presa. Queria realizar meu sonho e um dia me tornar uma atleta paralímpica", reafirmou. "O esporte fez milagres na minha vida pessoal e esportiva. Ele me permitiu estar onde estou hoje. O esporte me dá coragem, força e autoconfiança. Ele me traz muita felicidade e me ajudou a apreciar minha deficiência", declarou a atleta, que agora se prepara para Los Angeles 2028, contrariando a concepção grega do destino - inalienável para os criadores das Olimpíadas, mas remodelável pela garra de uma jovem atleta deficiente afegã.
(Com RFI e agências)
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