'Estupro se tornou arma de guerra', diz criadora de associação contra violência sexual na República Democrática do Congo
Em 2023, mais de 25 mil mulheres foram vítimas de violência sexual na República Democrática do Congo (RDC), segundo a Ong Médicos Sem Fronteiras. E nos primeiros cinco meses de 2024, o país já ultrapassa 17 mil vítimas. A situação piora a cada dia, como relatou à RFI a incansável ativista Tatiana Mukanire Bandalire, criadora da associação "Além das lágrimas", que luta contra as agressões sexuais no país.
"Na verdade, já faz 30 anos que sabemos sobre todas essas atrocidades, das quais eu mesma fui vítima", conta Tatiana Mukanire Bandalire. "Isso significa que a situação piora a cada dia, com tudo isso que envolve insurreições, rebeliões. A situação está se deteriorando, e as mulheres estão cada vez mais expostas, porque, com a guerra, as mulheres continuam sendo usadas. Eles seguem utilizando os corpos das mulheres como armas de guerra", denuncia.
"O estupro se tornou, de fato, uma arma de guerra na RDC, porque, em certo ponto, com toda a resiliência que o povo congolês criou diante dessas atrocidades, essa prática continua a devastar vidas", sublinha.
Mukanire lembra que, na cultura africana, "a mulher é a pessoa mais importante em uma comunidade". "Ao destruí-la, destrói-se toda a comunidade. É por isso que os agressores utilizam o corpo da mulher como instrumento para humilhar uma comunidade inteira. Quando uma mulher é estuprada em público, quando chega a ser violentada e submetida a atrocidades como a introdução de ácido, armas ou objetos cortantes em seus órgãos genitais, não estão apenas destruindo o corpo, mas também a alma [de uma coletividade]", aponta.
Romper o silêncio
Desde 2017, ela atua no movimento de sobreviventes de violência sexual. "Criamos o movimento de sobreviventes de violência sexual na RDC porque era hora de passar do estado de vítima para o de agentes de mudança e também contribuir para a luta contra o estupro e a violência sexual", pontua. "Foi assim que reunimos as sobreviventes, que também fomos vítimas, para irmos a campo, testemunharmos de perto e ajudarmos outras vítimas", relata a ativista.
"Sabemos que é mais fácil para uma vítima falar com alguém que já viveu essa experiência em sua própria pele. Por isso, organizamos esse movimento, para apoiar as vítimas que não tiveram coragem de falar, que ainda não conseguiram romper o silêncio", sublinha.
"As sobreviventes estão falando [sobre a violência sexual] cada vez mais hoje, porque, em um determinado momento, nós, que falamos primeiro, nos tornamos exemplos para outras mulheres", destaca. "Percebemos que as vítimas continuam a falar e, mais do que isso, estão se engajando. Não se trata apenas de falar; elas estão se envolvendo ativamente nessa luta", comemora Tatiana Mukanire.
"Esperança"
"Isso revela a resiliência das mulheres. Mostra a coragem de mulheres que antes estavam presas ao silêncio, se destruindo por dentro, mas que agora aceitam enfrentar seus medos, encarar sua humilhação e se tornar agentes de mudança. Para mim, isso traz esperança, dá força a toda uma comunidade", avalia.
Escuta para superar o trauma
Mukanire afirmou à RFI que "as mulheres que foram vítimas precisam, antes de tudo, ser ouvidas". "É importante que elas sejam ouvidas porque, ao falar, elas conseguem externalizar essa dor, esse peso que guardaram por tanto tempo dentro de si. Porém, não basta apenas ouvir. Elas também precisam de apoio concreto, de um acompanhamento adequado para enfrentar e superar o trauma", afirma.
É possível se reerguer depois de ter sido humilhada? É possível se reerguer depois de ter enfrentado o pior na vida?
Ela lembra que o acompanhamento deve abranger diversos aspectos: "médico, psicológico, jurídico e, também, uma boa reinserção socioeconômica". No entanto, as vítimas precisam ser envolvidas ativamente nesse processo. É o que chamamos, como rede de sobreviventes, de cocriação. Ao apoiar as vítimas e oferecer suporte, é fundamental envolvê-las em todos os níveis", diz.
"Isso significa consultá-las desde o início, antes de implementar qualquer projeto ou iniciativa, para que possam participar da construção de soluções que realmente atendam às suas necessidades", sublinha.
"É possível se reerguer depois de ter sido humilhada? É possível se reerguer depois de ter enfrentado o pior na vida?", questiona a ativista. "Eu não diria que me levantei completamente. Ainda assim, luto todos os dias contra os demônios da minha vida, contra o trauma que carrego", afirma.
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Quero receber"No entanto, sou um exemplo para todas as mulheres que passaram por essas atrocidades e que desejam se reerguer. Em algum momento, percebi que era importante falar sobre isso, que era essencial romper o silêncio. Hoje, posso dizer que sou uma sobrevivente. Sou um modelo, uma mulher digna e vitoriosa, porque, em algum ponto, consegui me levantar e agora tento ajudar outras a fazerem o mesmo", aponta Mukanire.
Abandono da comunidade internacional
"Acho que, em determinado momento, sentimos que somos ouvidas em alguns níveis, mas em outros, não, porque há pessoas que escutam, mas não reagem", denuncia. Esse é exatamente o caso da comunidade internacional. Pessoalmente, já estive na Otan, nas Nações Unidas e em muitos fóruns e conferências internacionais", relata.
"Infelizmente, depois de tudo o que dissemos, percebemos que nada é feito. Ninguém realmente tenta nos apoiar, ninguém estende a mão. No entanto, somos humanos como qualquer outra pessoa, e nossas vidas têm tanto valor quanto as vidas de qualquer outro", lembra.
Não haverá paz sem justiça.
Impunidade
"Todos os dias, me pergunto por que continuo lutando. Às vezes, questiono: por que faço isso? Será que vou conseguir? Será que vale a pena? Mas, em algum lugar, ainda há esperança", reflete a ativista congolesa.
"Quando vemos que o governo cria um Fundo Nacional para Reparação das Vítimas, percebemos que existe uma centelha de esperança. No entanto, há muito trabalho a ser feito para alcançar resultados concretos. Não haverá paz sem justiça", diz.
"Embora todos desejemos a paz, os responsáveis por tantas atrocidades continuam à solta, vivendo em outros países, sem nunca terem sido julgados. Isso alimenta e fortalece a impunidade. Trazer essas pessoas à justiça é fundamental para romper esse ciclo e, finalmente, construir uma paz verdadeira e duradoura", conclui Tatiana Mukanire.
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