Deslocados em cidade russa de Kursk relatam cansaço com a guerra e descontentamento cresce
Fato raro, o Ministério da Defesa russo reconheceu que vários mísseis tinham "atingido os seus alvos" em Kursk e relatou a existência de dois soldados russos feridos e um radar danificado, após dois ataques nos dias 23 e 25 de novembro. A intensificação dos combates na região preocupa os habitantes e a presença contínua do exército ucraniano gera um descontentamento crescente.
Anissa El Jabri, enviada especial da RFI a Kursk,
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Com sacos vazios nas mãos, duas mulheres apresentaram-se no ponto de distribuição de ajuda humanitária do partido Rússia Unida, de Vladimir Putin. Refugiadas em Kursk desde o início dos combates na região de mesmo nome, em agosto, uma delas tem o rosto marcado por profundas olheiras e não esconde seu esgotamento físico e moral.
"Eu trabalhava num frigorífico, numa pequena aldeia não muito longe dos combates. Muitas pessoas que conheço voltaram para lá por sua própria conta e risco. Mas a situação é simples: você pode pisar em uma mina ou ficar sob fogo cerrado. Há explosões o tempo todo, a guerra continua", indica. "Eu não correria esse tipo de risco. Eu tenho dois filhos."
A mulher descreve uma vida difícil como deslocada: convencida de que só deixaria a sua casa por alguns dias, ela agora está desempregada e precisa alugar um apartamento. Ela já admitiu que não poderá passar as férias de fim de ano em sua casa, mesmo que o local ainda seja poupado do violento conflito.
Revolta com a surpresa da chegada de soldados ucranianos
Num outro ponto de atendimento, a reportagem encontrou um homem que permanece brevemente em frente a uma placa que indica que as portas estão fechadas naquele dia. Seus amigos e familiares ficaram gravemente feridos nos últimos meses.
"Os ucranianos chegaram rapidamente e ninguém nos avisou. Nada foi antecipado, nenhuma avaliação da situação. Aqueles que puderam foram embora", conta. "Minha mãe e minha irmã não tiveram tempo. Minha irmã ficou ferida e caiu no chão após o impacto, inconsciente, enquanto tudo voava por toda parte. Ela ainda está internada na UTI. Os ferimentos da minha mãe são leves, mas minha irmã está muito mal. Por que isso aconteceu? Como isso é possível? E por que há países estrangeiros envolvidos?", questionou o homem com indignação, mas sem apontar responsáveis pelo conflito.
Sinal de um clima que se tornou pesado, o circo de Kursk, onde se concentrava a distribuição de ajuda alguns meses antes, não aceita mais receber jornalistas.
Outro sinal de tensão: uma reunião não autorizada foi realizada na praça central da cidade no dia 10 de novembro e, apesar de contar com apenas uma centena de pessoas, foi reprimida pelas autoridades, em uma Rússia que está cada vez mais fechada. O organizador do encontro foi multado.
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Futuro nebuloso
Na tentativa de amenizar as preocupações com a permanência da guerra, o novo governador anunciou estabelecimento de "certidões" de propriedade imobiliária. O documento ajuda os residentes que conseguem provar a perda de sua propriedade devido ao conflito a poderem comprar outra, em qualquer lugar da Rússia.
Muitos deslocados, no entanto, continuam com grande dificuldade em se projetar no futuro. Alexandre Novikov, estudante da cidade e, desde agosto, chefe do escritório de distribuição de ajuda aberto em Kursk por quinze movimentos de oposição, relata assistir a desesperança crescer a cada semana que passa.
"As pessoas não conseguem se adaptar porque não têm recursos", explica. "Elas só pensam em se proteger do frio em suas camas ou em comprar sua própria comida, com sua renda limitada. Até pouco tempo atrás, viviam bem. Alguns aguardavam a vida inteira para poder comprar uma casa, animais, e hoje tudo desapareceu. E alguns não têm nem mais família."
A passagem do tempo, constata Novikov, torna o processo emocional ainda mais difícil. No começo eles chegavam em estado de choque, emocionalmente abalados, mas pensavam que voltariam rapidamente para casa, afinal alguma autoridade local havia lhes dito que voltariam em breve. As pessoas mantiveram esse sentimento durante o primeiro mês, mas gradualmente começaram a perceber que desalojar as forças armadas ucranianas da zona de fronteira levaria tempo", diz.
Desaparecidos na zona de combate
Há também o delicado tema dos desaparecidos na zona de combate. Em meados de setembro, o chefe da diplomacia ucraniana, Andriï Sybiga, convidou a ONU e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha a visitar a parte da região russa de Kursk ocupada pokr Kiev. "A Ucrânia está pronta para facilitar o seu trabalho e demonstrar o seu respeito pelo direito humanitário internacional" neste território, escreveu ele no X.
A resposta do Kremlin veio rapidamente e foi contundente. O porta-voz da presidência russa descreveu esta observação como "pura provocação", mostrando o quanto o assunto desperta tensão e é monitorizado de perto pelo topo do poder.
Esta sexta-feira, pela primeira vez, foram repatriadas 46 pessoas. Cerca de 6.000 mandados de busca foram protocolados.
A presença duradoura de soldados de Kiev e este aumento de tensão também tiveram um impacto sobre os habitantes de Kursk. A ofensiva iniciada em agosto parece ter abalado a confiança dos moradores nas escolhas do Kremlin.
"No início da operação militar especial, aqueles que a apoiavam acreditavam que seria rápida e correria conforme o planejado. Então, um ano depois, quando grupos de sabotagem começaram a entrar na região de Belgorod, muitos moradores da região da vizinha Kursk não gostaram", analisa Alexander Novikov. "Muitos queriam uma resposta firme, que as coisas parassem de se arrastar, que houvesse um ataque forte e decisivo em algum lugar e acabasse com isso. E a terceira fase da mudança de mentalidade ocorreu quando a região de Kursk foi atingida diretamente, primeiro por bombardeios, depois por invasão e ocupação do território. Esta parte da população, estes apoiadores ativos da decisão dos que estão no poder, acho que está menor agora."
O estudante afirma que aqueles que sempre foram a favor da paz continuam com esta posição - mas muitos dos indecisos agora se juntaram a eles. "E esta tendência, é óbvio, está a aumentar ao longo do tempo. Cada vez mais pessoas dizem: de uma forma ou de outra, temos que acabar com tudo isso", acrescenta.
Enquanto o país se aproxima dos três anos de guerra, as pesquisas devem ser encaradas com cautela. Mas o último estudo do Russian Fields Institute, realizado no início de novembro, mostrou que o apoio às negociações de paz nunca foi tão grande no país: 54% das pessoas ouvidas eram a favor, enquanto 36% ainda querem a continuação do conflito.