As cicatrizes do Apartheid na África do Sul 30 anos depois do fim do regime
Há exatos 30 anos o regime do Apartheid chegou ao fim na África do Sul. Os principais personagens deste final pacífico para um dos regimes mais odiosos de segregação racial da história humana foram o líder do Congresso Nacional Africano (CNA), o negro Nelson Mandela, e o líder do Partido Nacional da África do Sul (PN), o branco Frederik William De Klerk. Em 1994, na primeira eleição realmente universal e democrática no país, Mandela foi eleito presidente, cargo que ocupou até 1999.
Flávio Aguiar, analista político
O regime do Apartheid foi oficialmente instituído na África do Sul a partir de 1948, quando o Partido Nacional, liderado por Daniel Malan, venceu as eleições comprometendo-se a manter a supremacia política, econômica e cultural da minoria branca, constituída sobretudo pelos então chamados de Boers, descendentes dos colonos holandeses, hoje chamados de Afrikaaners.
O regime segregacionista voltado contra a maioria negra tinha antecedentes longínquos, promovidos pelo colonialismo europeu dos portugueses, da Companhia das Índias Orientais e do Império Britânico, que dominou a maior parte da região até quase o começo da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, o regime de discriminação racial instituído a partir de 1948 e conhecido com o nome de Apartheid chegou a um requinte cruel raramente vistos na história humana, "aperfeiçoando" as segregações anteriores.
O principal arquiteto do regime teria sido Hendrik Verwoerd, que veio a ser primeiro-ministro sul-africano entre 1958 e 1966. Um exemplo do "aperfeiçoamento" do sistema de discriminação foi no chamado "Ato de Imoralidade", de 1927, que proibia o casamento entre pessoas brancas e negras. O "Ato de Proibição de Casamentos Mistos", de 1949, proibiu o casamento de pessoas brancas com pessoas de qualquer outra etnia.
"Anonimato humano"
O Apartheid reconhecia a existência de quatro "raças" no país: os brancos, os asiáticos, inicialmente chamados de indianos, os "coloured", que no Brasil o IBGE chamaria de "pardos", e os negros. Curiosamente, os documentos de identidade de brancos, asiáticos e "coloured" registravam a etnia de seu proprietário. Já os documentos dos negros não traziam nenhuma definição, os condenando a uma espécie de anonimato humano.
A legislação do Apartheid era vasta e abrangente, e sua violação era considerada um crime contra o Estado, ou lesa-pátria, com punições extremamente severas. Estabelecia a segregação racial em todas as dimensões da vida, da intimidade sexual aos locais de trabalho. Abrangia a licença para o estabelecimento de residência, os locais de trabalho, os serviços públicos, o transporte, a educação, a saúde, o lazer e tudo o mais que a vida pudesse compreender.
Apesar da forte resistência interna e internacional, os governos do Apartheid estiveram longe de permanecerem isolados. Devido à Guerra Fria, contaram com fortes apoios entre políticos conservadores, como Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margareth Thatcher na Inglaterra, no sistema bancário e financeiro internacional, na indústria de armamentos e nos serviços de inteligência policial de diversos países em todos os continentes, inclusive africanos.
O regime sul-africano se tornou um defensor dos remanescentes do colonialismo europeu na África e um apoiador de políticos de direita nos países que declaravam sua independência.
Nelson Mandela
Preso em 5 de agosto de 1962, Nelson Mandela tornou-se o principal líder e símbolo da resistência contra o regime, sendo condenado por alta traição algum tempo depois. Passou por algumas prisões durante os mais de 27 anos que ficou no cárcere.
Mandela era submetido a um regime duríssimo. Podia escrever apenas duas cartas por ano, cada uma com no máximo 500 palavras, relidas sistematicamente pela censura antes de serem enviadas.
Frederik William De Klerk, presidente do país entre 1989 e 1994, foi o político branco que chegou à conclusão de que os dias do Apartheid estavam contados, e se dispôs a apressar o seu fim antes que fosse tarde demais para uma solução negociada.
Entre outras providências, apressou a libertação de Mandela, o que aconteceu no começo de fevereiro de 1990. Quatro anos depois, Mandela saia de sua casa no bairro de Soweto, em Johannesburgo, direto e triunfalmente para o Palácio Presidencial.
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Quero receberPaís mais desigual do mundo
Se a legislação do Apartheid foi varrida do mapa há 30 anos e hoje o regime é considerado um crime contra a humanidade, as suas cicatrizes estão longe de desaparecer. Um relatório do Banco Mundial de 2022 deu à África do Sul a incômoda posição de ser o país mais desigual do mundo.
Por exemplo, os traços remanescentes da divisão de bairros residenciais por etnias são claramente visíveis, além de outros. Organizações não governamentais e agências do governo reconhecem a existência de racismo e de diferenças graves de oportunidades, emprego e serviços em prejuízo da população negra, que perfaz mais de 80% dos 62 milhões de habitantes do país, sendo que quem têm mais de 30 anos conheceu a vida sob o Apartheid.
Entretanto, apesar das dificuldades, o sentimento que se percebe no tratamento cotidiano com quase todas as pessoas é de alegria e de um otimismo comedido. Claro: viver sob Apartheid devia ser algo tão horrível que qualquer outra forma de vida é bem-vinda.
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