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Papa Bento 16 será lembrado por calar diante de uma injustiça

Papa Bento 16 deixa o salão Paulo 6º, no Vaticano, ao final da primeira audiência pública depois de anunciar sua renúncia. Ele disse a milhares de fiéis que estava deixando o cargo para "o bem da igreja" - Alessandra Tarantino/AP
Papa Bento 16 deixa o salão Paulo 6º, no Vaticano, ao final da primeira audiência pública depois de anunciar sua renúncia. Ele disse a milhares de fiéis que estava deixando o cargo para "o bem da igreja" Imagem: Alessandra Tarantino/AP

21/02/2013 00h01

O papa Bento 16 será lembrado por sua renúncia e por ter protegido milhares de sacerdotes pederastas. E por muito pouco mais. Passará à história como o papa que, ao enfrentar o principal desafio de seu pontificado, ficou calado.

Como papa, Bento poderia ter passado à história por proteger milhares de crianças que foram abusadas sexualmente por sacerdotes católicos. Mas não o fez. Preferiu guardar silêncio e encobrir pederastas criminosos. Seu silêncio destruiu a vida de menores de idade em todo o mundo.

A renúncia de Bento é bem-vinda. Disse que o fazia pelo bem da Igreja, e nisso tem razão. Se não teve a coragem e a força para denunciar à justiça civil os criminosos que há dentro dessa mesma Igreja, é melhor que se vá. O mínimo que podemos esperar é que o próximo papa não fique calado como ele.

Joseph Ratzinger desperdiçou todas as oportunidades que teve durante décadas para fazer o que era moralmente correto. De 1981 a 2005 foi o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, literalmente, caíram sobre sua mesa milhares de casos de abuso sexual contra menores de idade cometidos por sacerdotes católicos. Nem uma única vez denunciou algum desses religiosos à polícia.

Nos últimos 50 anos foram denunciados mais de 9 mil casos de abuso sexual contra menores por parte de padres católicos, segundo a investigação do escritor Jorge Llistosella, autor do livro "Abusos Sexuais na Igreja Católica". Mas ele mesmo esclarece que esse número só inclui as denúncias que vieram à público. Muitas outras ficaram enterradas e escondidas. E sobre isso Bento nada fez.

Em 2004, 14 meses antes que Ratzinger fosse eleito papa, a Conferência Episcopal Católica havia dado a conhecer uma análise de documentos internos da Igreja que demonstravam que entre 1950 e 2002, nos EUA, mais de 4.300 padres católicos foram acusados de abusos sexuais por suas vítimas. Bento sabia disso. Ao chegar ao papado, poderia ter ordenado que esses documentos fossem entregues às autoridades para investigação posterior. Poderia ter-se certificado de que os sacerdotes pedófilos fossem levados à justiça; de que os culpados fossem castigados e proibidos de prejudicar a outros. É claro que não o fez.

Isso não é novidade. Bento atuou com a mesma passividade e cumplicidade na Alemanha, quando foi bispo de Munique. O jornal "The New York Times" relatou que em 1980, um ano antes de partir para Roma para ser o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o papa, antes Joseph Ratzinger, recebeu um documento que lhe informava que Peter Hullermann, um padre que foi acusado de abusos sexuais de crianças, estava sendo transferido de uma paróquia em Essen para Munique, para submeter-se a terapia. Hullermann continuou trabalhando com crianças e em 1986, depois de uma investigação policial, foi julgado e considerado culpado de abusos em sua nova paróquia.

O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, afirmou à imprensa que Ratzinger "não teve conhecimento" da transferência do padre Hullermann. Verdade ou não, seu comportamento futuro - tanto como papa quanto à frente da Congregação para a Doutrina da Fé - demonstra que nunca costumou entregar religiosos pederastas às autoridades civis.

Outro caso. Bento recebeu milhares de documentos sobre os diversos casos de abuso sexual de Marcial Maciel, o monstruoso fundador dos Legionários de Cristo. Mas em 2006, em vez de transformá-lo em um caso exemplar, o papa o afastou de todo ministério público e o protegeu da justiça até sua morte. Em sua viagem ao México em 2012, o papa se negou a encontrar-se com as vítimas de Maciel. Todo gesto papal é simbólico, e a mensagem de Ratzinger foi inequívoca: sabemos perfeitamente dos crimes de Maciel, mas não faremos nada a respeito.

Assim, o papa acredita na prática em dois sistemas de justiça: um padre católico abusa de um menor de idade e só é trocado de paróquia; um civil faz o mesmo e termina em uma prisão. É incompreensível que o chefe máximo de uma Igreja de 1,2 bilhão de fiéis tenha tomado a decisão de proteger os pederastas, e não suas vítimas. Isso vai contra os próprios preceitos do catolicismo.

Não creio na infalibilidade do papa. Tampouco creio que nesses temas tenha atuado com sabedoria. Pelo contrário, creio que Bento se equivocou redondamente ao tentar encobrir um dos piores escândalos da história recente da Igreja Católica. Longe de estar acima dos homens (como supõem muitos católicos), Bento demonstrou ser um líder temeroso, acovardado e péssimo exemplo para outros sacerdotes. O que Ratzinger fez com os casos de abuso sexual não deve ser imitado por ninguém, religioso ou não religioso.

O papa ficou encolhido. Não pôde nem quis. Só sua renúncia o reivindica um pouco. É claro que Joseph Ratzinger não é indispensável, e oxalá seja substituído por alguém que tenha o valor moral de confrontar e denunciar muitos criminosos que ainda hoje são protegidos pelo Vaticano.

O pior que um papa pode fazer é ficar calado diante de uma injustiça. E Bento ficou calado diante de uma injustiça monumental. Esse é seu pecado e assim, tristemente, será lembrado.