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Meu café da manhã com Gabo

24/04/2014 00h01

Na verdade, nunca o chamei de Gabo, ou Gabito. Gostaria, mas nunca fiz parte desse privilegiado círculo de amigos e escritores que se reuniam frequentemente com Gabriel García Márquez, o romancista mais importante de nosso tempo. E nem sequer o conhecia em pessoa.

Como milhões de leitores, cresci com ele, lendo-o, analisando-o, tentando chegar ao cerne de cada uma de suas frases perfeitas. Sua carpintaria era única; sempre parecia encontrar a palavra exata para dizer o que queria. Isso exigia muito trabalho, muito talento e muitas páginas no lixo. (Esquecemo-nos de que o computador é pós-Aureliano Buendía e sua descoberta do gelo.)

Em minha época universitária, García Márquez já era García Márquez, o gênio de "Cem Anos de Solidão" e o melhor expoente do realismo mágico - essa maneira tão nossa de ver o mundo. Macondo é a América Latina. E neste rincão do planeta onde tudo é possível - ditadores que não morrem, crianças com rabos, mulheres que flutuam, amores eternos e fantasmas mais vivos que os vivos - García Márquez foi o primeiro a lhes dar voz e legitimidade.

Gabriel García Márquez deixa manuscrito inédito

Em 2004, quando um colega jornalista me convidou para um evento em Los Cabos, México, onde iriam homenagear García Márquez, aceitei com uma condição: que o apresentasse a mim.

Nesse dia me levantei emocionado, encontrei-me com o organizador disposto a cumprir sua promessa e, de repente, lá estava o escritor; tomando o desjejum com sua esposa, Mercedes, em um canto do restaurante de um enorme hotel e cumprimentando tanta gente com a mão que parecia que espantava moscas.

Engoli a vergonha de incomodá-lo e me aproximei, enquanto ele enfiava o garfo, creio, em ovos estrelados. Apresentei-me e, para minha surpresa, ele me disse: "Venha, sente-se aqui para ver se assim param de incomodar". E puxou uma cadeira a seu lado.

O que alguns dias antes teria sido absoluta ficção estava ocorrendo; eu tomava o café da manhã com García Márquez. Para Mercedes, suspeito, eu era mais uma praga, e me fez saber disso com seu olhar de dardo. Mas aguentei as agulhadas e fiquei a conversar. Era preciso matar duas horas e eu tinha García Márquez ao meu lado. Não ia desperdiçar.

Mas o primeiro a perguntar foi ele. Queria saber tudo sobre a Univision, a rede de televisão onde trabalho, e sobre os cubanos em Miami. Contei-lhe, mas o que queria era ouvi-lo. Busquei a pausa e lhe disse: não entendo sua amizade e seu apoio a Fidel Castro. Então Mercedes brincou, como que falando pelos dois: "Nós o conhecemos há muito tempo, é nosso amigo, e já é muito tarde para mudar", disse-me.

O escritor assentiu. Para ele, a amizade e a lealdade vinham antes da política. "Os que falam de política são Mercedes e Fidel", apontou. Mas não é nenhum segredo que García Márquez intercedeu junto a Castro para libertar alguns presos políticos cubanos e talvez algo mais.

O escritor mexicano Carlos Fuentes me contou sobre um jantar em setembro de 1994 com García Márquez e o presidente Bill Clinton em Martha's Vineyard. Clinton pediu a García Márquez que falasse com Castro para buscar uma aproximação entre os dois líderes?

O próprio Clinton, no ano passado, me disse que nunca pediu nesse jantar que García Márquez atuasse como mediador com Castro. Mas qualquer possibilidade posterior de uma aproximação entre EUA e Cuba por meio do escritor colombiano ficou destruída depois da derrubada pela força aérea cubana de dois pequenos aviões do grupo Irmãos ao Resgate, em 1996.

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No México, nosso desjejum, entretanto, tratou mais de literatura e jornalismo que de política. Nesse momento, García Márquez estava concentrado na criação de uma nova geração de repórteres por meio da Fundação Novo Jornalismo. Mas, reconheço, houve momentos em que García Márquez perdia o interesse e saía da conversa, quem sabe para onde.

Pude lhe dizer, quase como confissão, que para mim seu melhor romance era "O Outono do Patriarca", e como resposta seu bigode espumoso subiu como uma onda. E não, ele nunca havia dito que "Cem Anos de Solidão" não poderia ter sido escrito nesse momento em que os leitores buscavam novelas mais curtas.

O café da manhã terminou quando nos chamaram para o evento. Ele pegou-me pelo braço, caminhamos juntos e depois o perdi em um mar de elogios e seguidores. Nunca nos despedimos. Foi melhor assim.

Para mim, por muito tempo, esse foi o realismo mágico: sentar-me para tomar o café da manhã com Gabriel García Márquez. Impossível. Impensável.

No entanto, lá estivemos.