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A outra face dos EUA

Jorge Ramos

06/05/2015 00h01

Os EUA não são só Apple, Google, Hollywood e Disneyland. Também são Baltimore, Ferguson e muitas outras cidades onde alguns policiais, em vez de cuidar e proteger, maltratam e matam. Venho de um país onde as pessoas têm medo da polícia. No México, muitos sabem que os policiais estão ligados a criminosos e que não se pode confiar neles. Nos EUA também há pessoas que desconfiam de sua polícia local, embora por motivos diferentes; temem-na por discriminação e por abuso de autoridade.

Os injustificáveis saques e roubos ocorridos há alguns dias em Baltimore desviaram a atenção do verdadeiro problema em muitos lugares dos EUA. O problema se chama brutalidade policial. As vítimas? Afro-americanos, hispânicos, imigrantes e membros de minorias. E é claro que estão revoltados (mas nem por isso vale queimar farmácias e roubar tênis de shopping centers).

Os abusos da polícia nos EUA fazem parte de uma longa lista. Fevereiro passado foi terrível para os imigrantes.

A polícia de Pasco, Estado de Washington, disparou contra Antonio Zambrano-Montes e o matou depois que o trabalhador agrícola lhes atirou algumas pedras. No mesmo mês em Gravepine, Texas, Rubén García Villalpando foi abatido depois de uma perseguição policial. E em Santa Ana, Califórnia, Ernesto Canepa - que tinha dois empregos e criava quatro filhos - perdeu a vida nas mãos da polícia. Todas essas vítimas estavam desarmadas.

Esses casos praticamente passaram despercebidos para os meios de comunicação em inglês. Mas refletem a tensão entre as autoridades e a comunidade latina no país. Eu escuto frequentemente queixas de que policiais detiveram um imigrante ou um hispânico só pela cor de sua pele ou por seu sotaque. Assim, uma simples infração de trânsito pode se transformar na perda de um carro, em uma ordem de deportação ou no fim de uma vida.

Os afro-americanos, entretanto, sofrem desproporcionalmente o abuso dos corpos policiais. Há casos muito dramáticos e carregados de publicidade, como o da morte do jovem Michael Brown em Ferguson, Missouri, e o do estrangulamento de Eric Garner em Nova York. Mas muitos outros afro-americanos morreram nas mãos da polícia.

Baltimore é uma cidade dividida racial e economicamente, e nem mesmo o fato de sua prefeita e seu chefe de polícia serem afro-americanos a tornou mais hospitaleira para essa minoria. Uma pesquisa do jornal "The Baltimore Sun" descobriu que desde 2011 mais de cem pessoas processaram a cidade, e ganharam, por acusações de brutalidade policial e violações de seus direitos civis. A cidade teve de pagar quase US$ 12 milhões às vítimas e em gastos com advogados.

Não é fácil ser afro-americano ou hispânico nas ruas de Baltimore. O pastor Angel Nuñez, que há mais de duas décadas ajuda imigrantes na cidade, me disse em uma entrevista que "muitos latinos foram maltratados, terminaram na prisão; houve muitos abusos, e disso não se divulga quase nada". Ele tem razão.

A impunidade policial é um grave problema. Os policiais que matam injustamente poucas vezes acabam na prisão. Dos milhares de casos de agentes que mataram alguém durante uma operação policial em nível nacional desde 2005 até hoje, só 54 foram formalmente acusados, segundo uma pesquisa do jornal "The Washington Post". E depois a maioria desses policiais foi considerada inocente ou as acusações foram retiradas.

Quer dizer, um policial que mata quase nunca tem de enfrentar a justiça. Isso explica os enormes protestos em Baltimore depois da misteriosa morte do jovem Freddie Gray, 25. O que sabemos é que estava desarmado e que morreu devido às lesões que sofreu durante a custódia policial.

Na sexta-feira, seis policiais foram acusados em relação à morte de Gray, o que fez surgir a esperança de que a justiça seja aplicada agora. Mas muitos moradores de Baltimore suspeitam que nesse caso, como em muitos outros, nada acontecerá.

Os incêndios e os roubos em Baltimore, assim como policiais que matam membros de minorias, não fazem parte da imagem que muitos têm dos EUA. Fora daqui, para muitos, os EUA são o país das superestradas, dos shopping centers, das invenções tecnológicas, do exército mais poderoso do planeta, e uma grande experiência de liberdade. Mas basta que um policial o detenha para pôr à prova esse estereótipo.

A eleição do primeiro presidente afro-americano, Barack Obama, não significou a chegada de uma sociedade pós-racial. É claro, existem avanços inquestionáveis, mas ainda há enormes e ultrajantes diferenças raciais. E para comprovar isso basta sair caminhando por uma rua de Baltimore.