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A vontade dos mercados

Paul Krugman

18/10/2014 06h00

Na Idade Média, a chamada para uma cruzada para conquistar a Terra Santa era recebida com gritos de “Deus vult!” –Deus quer. Mas será que os cruzados sabiam realmente o que Deus queria? Dada a forma como terminou o empreendimento, aparentemente, não.

Isso foi há muito tempo e, entre os temas que eu trato, raramente ouve-se invocações da vontade de Deus. Vemos, no entanto, um monte de cruzadas políticas, muitas vezes justificadas com gritos implícitos de “Mercatus vult!” –o mercado quer. Mas será que aqueles que invocam a vontade do mercado realmente sabem o que querem os mercados? Mais uma vez, aparentemente não.

E a turbulência financeira dos últimos dias acentuou a diferença entre o que dizem que deve ser feito para apaziguar os mercados e o que os mercados realmente parecem estar pedindo.

Para ser mais específico: foi-nos dito repetidamente que os governos devem cessar seus esforços para mitigar os problemas econômicos, para que sua compaixão excessiva não seja punida pelos deuses financeiros, mas os próprios mercados nunca pareceram concordar que esses sacrifícios humanos realmente sejam necessários. Supostamente, os investidores seriam aterrorizados por déficits orçamentários, temendo que em breve nos transformaríamos em uma Grécia -- Grécia, mesmo!

Mas, ano após ano, as taxas de juros permaneceram baixas. Supostamente, os esforços do Fed para estimular a economia sairiam pela culatra, pois os mercados reagiriam à perspectiva de inflação galopante, mas os índices de inflação esperada pelo mercado permaneceram baixos.

Como é que os cruzados da política responderam ao fracasso de suas previsões sombrias? Principalmente com negação, ocasionalmente com exasperação. Por exemplo, Alan Greenspan declarou certa vez que era lamentável a falta de uma alta nas taxas de juros e na inflação porque isso promovia “uma falsa sensação de complacência”. Mas isso foi há mais de quatro anos, talvez o sentimento de complacência não fosse assim tão falso?

Tudo somado, é difícil escapar à conclusão de que pessoas como Greenspan sabiam tanto sobre o que o mercado queria quanto os cruzados medievais sabiam sobre o plano de Deus -- ou seja, nada. Na verdade, se você olhar de perto, a verdadeira mensagem do mercado parece ser que devemos assumir déficits maiores e imprimir mais dinheiro. E essa mensagem ficou muito mais forte nos últimos dias.

Eu não estou falando principalmente sobre a queda nos preços das ações, apesar de certamente isso nos dizer alguma coisa (mas como salientou o falecido Paul Samuelson, as ações não são um indicador confiável de perspectivas econômicas: “Os índices de Wall Street previram nove das últimas cinco recessões!”). Em vez disso, estou falando sobre as taxas de juros, que estão advertindo sobre depressão e deflação e não sobre crise fiscal e inflação.

Ainda mais óbvio é o fato das taxas de juros de longo prazo da dívida do governo dos EUA -- as taxas que os suspeitos de sempre continuam nos dizendo que vão disparar a qualquer momento, a menos que os gastos sejam reduzidos -- terem caído acentuadamente. Isso nos diz que os mercados não estão preocupados com um calote, e sim com a persistente debilidade econômica, o que vai impedir o Fed de aumentar as taxas de juros de curto prazo que ele controla.

As taxas de juros de grande parte da dívida europeia estão ainda mais baixas, porque as perspectivas econômicas da Europa são tão ruins, e não estamos falando apenas de Alemanha. A França está em conflito com a Comissão Europeia, que diz que o déficit projetado francês é muito grande, mas os investidores -- que ainda estão comprando os bônus franceses, apesar de uma taxa de juros de 10 anos de apenas 1,26% -- estão, evidentemente, muito mais preocupados com a estagnação europeia do que com o calote francês.

Também é educativo observar as taxas de juros sobre títulos “protegidos contra a inflação” ou “índice”, que estão nos dizendo duas coisas. Em primeiro lugar, os mercados estão praticamente implorando aos governos que tomem empréstimos e gastem, digamos, com infraestrutura; as taxas de juros de títulos do índice estão pouco acima de zero, de modo que o financiamento de estradas, pontes e esgotos sairia quase de graça.

Em segundo lugar, a diferença entre as taxas de juros dos títulos do índice e de bônus comuns nos diz quanta inflação é esperada pelo mercado, e verifica-se que a inflação esperada caiu acentuadamente ao longo dos últimos meses, de modo que agora está muito abaixo da meta do Fed.

Com efeito, o mercado está dizendo que o Fed não está imprimindo dinheiro suficiente.

Uma pergunta que talvez você faça é por que a mensagem do mercado em favor dos gastos e da impressão de dinheiro, de repente, ficou mais sonora. Meu palpite é que está sendo impulsionada principalmente pelos acontecimentos na Europa, onde a deflação e a crescente reação pública contra a austeridade levaram a um ponto de inflexão. E é muito razoável temer que os problemas da Europa se espalhem para o resto.

De qualquer forma, a próxima vez que você ouvir alguma cabeça falando sobre o que devemos fazer para satisfazer os mercados, pergunte-se: “Como é que ela sabe?”. Pois a verdade é que, quando as pessoas falam sobre o que o mercado, o que elas estão realmente fazendo é tentando nos intimidar para que façamos o que elas querem.