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A longa sombra da escravidão

A igreja metodista Emanuel, onde nove pessoas negras foram assassinadas na última quarta-feira (17) por um jovem branco, faz sua primeira cerimônia após o massacre - David Goldman/AFP
A igreja metodista Emanuel, onde nove pessoas negras foram assassinadas na última quarta-feira (17) por um jovem branco, faz sua primeira cerimônia após o massacre Imagem: David Goldman/AFP

Paul Krugman

23/06/2015 00h01

Os Estados Unidos são um país muito menos racista do que já foi, e não estou falando apenas sobre o fato ainda notável de que um afro-americano ocupe a Casa Branca.

O racismo institucional cru que prevaleceu antes que o movimento dos direitos civis pusesse fim a Jim Crow [leis adotadas principalmente nos Estados do sul dos EUA] acabou, embora persista uma discriminação mais sutil. As atitudes individuais também mudaram, em alguns casos drasticamente. Por exemplo, tão recentemente quanto nos anos 1980, a metade dos americanos era contra o casamento interracial, posição hoje apoiada por uma pequena minoria.

Mas o ódio racial ainda é uma força poderosa em nossa sociedade, como acabamos de ser lembrados, com horror. E sinto muito dizer isto, mas a divisão racial ainda é uma característica definidora de nossa economia política, o motivo pelo qual os EUA são únicos entre as nações avançadas no tratamento duro que dão aos menos afortunados e em sua tendência a tolerar sofrimentos desnecessários entre seus cidadãos.

É claro, dizer isso provoca negações iradas de muitos conservadores, portanto tentarei ser frio e cuidadoso aqui e citarei algumas evidências avassaladoras da constante centralidade da raça na política nacional.

Minha compreensão pessoal do papel da raça na excepcionalidade dos EUA foi amplamente moldada por dois trabalhos acadêmicos.

O primeiro, do cientista político Larry Bartels, analisou o afastamento da classe trabalhadora branca dos democratas, que ficou famoso em "Qual É o Problema do Kansas?", de Thomas Frank. Ele afirmou que os trabalhadores brancos foram induzidos a votar contra seus próprios interesses pela exploração de questões culturais pela direita. Mas Bartels mostrou que a virada dos trabalhadores contra os democratas não foi um fenômeno nacional -- foi totalmente restrito ao sul, onde os brancos se tornaram majoritariamente republicanos depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da adoção por Richard Nixon da chamada estratégia sulista.

E essa mudança de partido, por sua vez, foi o que conduziu à virada à direita da política americana depois de 1980. A raça possibilitou o reaganismo. E até hoje os brancos sulistas votam majoritariamente nos republicanos, chegando a 85% ou mesmo 90% no Sul profundo.

O segundo trabalho, dos economistas Alberto Alesina, Edward Glaeser e Bruce Sacerdote, intitulava-se "Por que os Estados Unidos têm um Estado do Bem-Estar no Estilo Europeu?". Seus autores -- que não são, aliás, especialmente liberais -- exploraram diversas hipóteses, mas afinal concluíram que a raça é central, porque nos EUA os programas que ajudam os necessitados são com frequência vistos como programas que ajudam "Aquelas Pessoas": "Nos EUA, a raça é o fator isolado mais importante de previsão de apoio à assistência social. As difíceis relações raciais nos EUA são claramente um grande motivo da ausência de um Estado do bem-estar americano".

Mas esse trabalho foi publicado em 2001, e você poderia se perguntar se as coisas mudaram desde então. Infelizmente, a resposta é não, como se pode ver examinando como os Estados estão implementando -- ou se recusando a implementar -- o Obamacare.

Para os que não têm acompanhado essa questão, em 2012, a Suprema Corte deu aos Estados a opção, caso preferissem, de bloquear a expansão do Medicaid pela Lei de Acesso à Saúde, uma parte vital do plano de oferecer seguro-saúde aos americanos de baixa renda.

Mas por que um Estado decidiria exercer essa opção? Afinal, os Estados poderiam ter um programa financiado pela federação que daria grandes benefícios a milhões de cidadãos, despejaria bilhões em suas economias e ajudaria a apoiar seus provedores de serviços de saúde. Quem recusaria tal oferta?

A resposta é: 22 Estados nesta altura, embora alguns possam eventualmente mudar de ideia. E o que esses Estados têm em comum? Principalmente, uma história de escravidão: só um ex-membro da Confederação expandiu o Medicaid e, enquanto poucos Estados do norte participam do movimento, mais de 80% da população de Estados que recusam o Medicaid vivem em unidades que praticavam a escravidão antes da Guerra Civil.

E não é apenas a reforma da saúde: uma história de escravidão é um forte fator de previsão de tudo, desde o controle das armas (ou ausência dele) aos salários mínimos baixos, hostilidade aos sindicatos e política fiscal.

Então sempre será assim? Os EUA estão condenados a viver para sempre politicamente à sombra da escravidão?

Eu gostaria de pensar que não. Por um lado, nosso país está se tornando mais diversificado etnicamente, e a antiga polaridade negro-branco lentamente se torna antiquada. Por outro, como eu disse, nós realmente nos tornamos uma sociedade muito menos racista, e em geral muito mais tolerante, de muitas maneiras. Com o tempo, deveríamos esperar ver diminuir a influência da política de racismo disfarçado.

Mas isso ainda não aconteceu. De vez em quando você ouve um coro de vozes declarando que a raça não é mais um problema nos EUA. É excesso de otimismo; ainda somos assombrados pelo pecado original de nosso país.