Atropelamento coletivo de ciclistas no RS não serviu para nada, diz vítima
O programador Helton Moraes, 37, tinha motivos de sobra para aposentar as quatro bicicletas que guarda no apartamento onde mora, na região central de Porto Alegre (RS), e que usa diariamente para fazer seus deslocamentos pela cidade: em 2011, quando participava da edição de fevereiro da ação Massa Crítica, foi o primeiro ciclista a ser atropelado pelo Golf preto dirigido pelo servidor público Ricardo Neis, que avançou sobre o grupo após ter a passagem interrompida e causou ferimentos em 11 pessoas.
Moraes, que estava a menos de quatro metros do atropelador, foi arrastado em direção ao grupo, preso ao para-choque do automóvel, o que lhe causou ferimentos em uma das mãos e em um cotovelo. O servidor público Ricardo Neis responde em liberdade a processos por 11 tentativas de homicídio e não há previsão para ser julgado.
No entanto, o ativista atropelado não pensou em parar de usar a bicicleta como meio de transporte. Os cuidados com a segurança redobraram, assim como aumentou a preocupação ao sair de casa e pedalar nas ruas. "O episódio de quatro anos atrás, infelizmente, foi inútil e não serviu para nada”, diz Moraes.
O ciclista diz que a convivência entre carros e bicicletas, em Porto Alegre, ainda é turbulenta, com progresso muito tímido. "Foram construídos alguns quilômetros de ciclovias, mas nesse período ficou evidente que a postura da prefeitura é adiar ao máximo as obras que não sejam direcionadas para os automóveis. Nós, pedestres e ciclistas, continuamos sendo encarados como obstáculos.”
O medo de Moraes se justifica porque ele nunca havia imaginado que poderia ser atropelado, deliberadamente, por um automóvel. "As condições de trânsito, tanto para pedestres quanto para usuários de bicicletas, são indignas. Existe indiferença, em alguns casos até desprezo, pela segurança do ciclista ou do pedestre. Falta solidariedade.”
O Plano Diretor Cicloviário Integrado de Porto Alegre (PDCI), por exemplo, prevê a construção de 495 km de via expressa para ciclistas, mas a cidade tem um dos mais baixos índices de implantação do país entre todas as capitais: 24,7 km, contra 440 km em Brasília, 374 km no Rio de Janeiro e 265 km em São Paulo, segundo levantamento da instituição Mobilize Brasil.
Em um ano, de maio de 2014 a maio de 2015, a prefeitura conseguiu cumprir apenas 10% da meta de entregar 50 km à cidade. Desde 2010, o ritmo de implantação é inferior a 5 km por ano.
Aquém do necessário
A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), que cuida da implantação das ciclovias em Porto Alegre, reconhece que a prefeitura não tem dinheiro e depende de contrapartidas e investimentos privados para executar o PDCI, em vigor desde 2009. “Dentro das contrapartidas, temos recursos de quase R$ 60 milhões disponíveis para serem investidos”, informa o diretor-presidente da EPTC, Vanderlei Capellari.
Mas, ao mesmo tempo em que se queixa da falta de recursos, o Executivo municipal luta na Justiça para impedir que 20% do valor das multas de trânsito sejam aplicados no plano – em valores do primeiro semestre, isso significaria R$ 6 milhões. Desde a aprovação da emenda que previa a garantia de recursos para o PDCI, a prefeitura de deveria ter destinado um total de R$ 10,8 milhões entre 2010 e 2013.
Para piorar a situação, as ciclovias de Porto Alegre não têm interligação e não formam uma malha capaz de garantir segurança ao usuário. “A diferença de investimentos entre os modais bicicleta, transporte público e automóvel é drástica. Aqui a malha cicloviária é construída não para favorecer o modal, mas para não prejudicar o trânsito de automóveis”, critica o presidente da Associação dos Ciclistas de Porto Alegre, Pablo Weiss.
O coordenador de comunicação do Mobicidade, Marcelo Guidoux Kalil, reforça a crítica de Weiss. Para ele, a alegação de falta de dinheiro por parte da prefeitura é “esdrúxula”, na medida em que várias obras de mobilidade foram concluídas nos últimos dois anos. Quase todas, porém, privilegiando apenas o transporte individual por automóvel.
“A cidade perdeu uma grande oportunidade de se transformar. Hoje o sistema de ciclovias não existe, é um monte de retalhos que não incentiva novos usuários”, avalia.
Enquanto isso, o trânsito caminha para o colapso e deixa o ambiente “cada vez mais hostil”, de acordo com o ciclista Helton Moraes. A solução é possível, segundo ele, mas requer vontade política. “Não se trata de uma questão tecnológica, mas cultural. Enquanto o público mimado do automóvel não se der conta de que faz parte do problema, nada vai mudar.”
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