'Troquei meus filhos pela cachaça, mas hoje virei terapeuta de dependentes'

O acompanhante terapêutico Gilson Inácio da Silva, 56, teve a vida marcada pelo vício em bebida e drogas. Os pais eram alcoólatras e, quando criança, viu a mãe morrer por causa da doença. Adulto, se viu também envolvido com a bebida e com outras drogas. Passou por oito internações, foi preso e conseguiu recuperar-se.

Hoje, especializou-se em ajudar aqueles que enfrentam situações semelhantes a que vivenciou. Veja seu relato:

"Cresci apanhando"

"Minha mãe era alcoólatra e não conseguia ficar 24 horas sem beber. Quando adoeceu, não conseguiu ficar sem beber e misturou o remédio com a bebida. Morreu dormindo, abraçada comigo e meus dois irmãos. Eu tinha cinco anos nessa época.

Eu e meu irmão fomos morar com meu pai no Guarujá [litoral de São Paulo]. Meu pai era alcoólatra também. E muito, muito bravo. Ele morava com a minha madrasta, uma mulher mais jovem que minha mãe, que maltratava muito a gente e protegia o filho que tinha com meu pai.

Gilson e o irmão, Gilmar, em uma das poucas fotos tiradas na infância
Gilson e o irmão, Gilmar, em uma das poucas fotos tiradas na infância Imagem: Arquivo Pessoal

Um dia, lavando os pratos no quintal, deixei cair e quebrei vários. Entrei em pânico, porque sabia que meu pai ia me arrebentar quando chegasse em casa. Minha madrasta ficou nervosa, mas me deu um dinheiro para ir até o açougue. Peguei um ônibus e fugi. Tinha 7 anos.

Meu pai me encontrou, me trouxe de volta e tomei aquela surra. E foi ficando cada vez mais violento. Sempre que chegava bêbado, batia na gente. Eu me tornei um menino medroso, tinha medo de escuro, do meu pai, de brigar com os meninos da escola — porque se brigasse, meu pai batia. Se não brigasse, ele batia mais. Cresci apanhando.

Foi nessa época, quando tinha uns 9 anos, que vivi meu primeiro porre. Um amigo me enganou, tomei bebida achando que era refrigerante, num gole só. Fiquei bêbado. Eu que tinha medo de tudo, fiquei corajoso.

Depois, quando tinha uns 16 anos, trabalhava como office boy na Câmara de Vereadores do Guarujá e contei como era minha vida para um advogado de lá. Ele me ajudou a fugir. Fui para casa dele em Santos (SP), ele comprou umas roupas para mim e entrou na Justiça para tirar a guarda do meu pai. Daí fui morar com uma tia.

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"Minha vida foi ladeira abaixo"

Eu morava com a minha tia, mas ela tinha os filhos dela para criar. Ficava largado, praticamente vivia na rua. Às vezes, não conseguia nem tomar banho. Comecei a beber com mais regularidade. Ia para os bailinhos e enchia a cara.

Aos 22 anos, meu pai morreu e a cocaína entrou na minha vida de vez. Aquela sensação de vencer a timidez me incentivou a continuar me drogando. Comecei a cheirar muito pó, e minha vida só foi ladeira abaixo. Um ano depois, veio o crack.

Foi quando conheci minha primeira esposa, a Rosane. Tentei segurar a onda por causa dela. Aluguei uma casinha, comecei a trabalhar de garçom em um hotel de Santos, me casei e tive meu primeiro filho.

Eu ganhava muito bem como garçom e até participava de concursos fazendo coquetéis. Mas a droga falou mais alto. Comecei a dar uns 'perdidos' na Rosane, ficava um ou dois dias fora de casa e só aparecia depois que a 'brisa' passava.

Nessa época, uma organização criminosa começava a tomar conta da região e eu tive que fugir dos traficantes. Larguei a Rosane com o meu filho, de três meses, nem falei para onde ia.

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Depois, ela pediu a separação. Fiquei sozinho, sem dinheiro. Nada dava certo.

"Voltei e deixei a bicicleta da entrega"

Bati na porta da casa da minha irmã, em São Vicente. Meu cunhado sabia que eu dava trabalho e impôs a condição de eu procurar a igreja que eles frequentavam para 'me curar'. Parei com tudo e fiquei três anos sem beber ou fumar.

Comecei a fazer salgados para fora e vender na rua e nas lanchonetes. Deu muito certo, comecei a ganhar bastante dinheiro. A Rosane voltou para mim, fiz curso de culinária e a vida ia muito bem mesmo. Foi quando nasceu minha segunda filha.

Até que um dia passei numa rua e vi uns caras saindo de uma casa 'alterados'. Tentei resistir, mas eles insistiram para eu entrar. Três anos depois de viver longe daquilo, eu me vi pegando uma pedra de crack. Paguei com o dinheiro dos salgadinhos.

Depois voltei e deixei a bicicleta de entrega. Voltei e paguei com o microondas. Já era. Comecei a roubar tudo de dentro de casa para conseguir dinheiro para fumar as pedras.

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A Rosane descobriu e me colocou para fora de casa. Comecei a morar na rua. Ela trocou as fechaduras, fiquei louco e arrebentei o portão com chutes. Ela pediu uma medida protetiva e, a partir daí, só podia olhar meus filhos de longe. Nessa época, já tinha mais duas filhas.

Todos os dias, eu esperava os meus filhos na rua da escola para poder falar com eles. Mas eu não conseguia pensar com clareza.

Matéria de um jornal local noticia a prisão de Gilson, quando ele tinha 38 anos
Matéria de um jornal local noticia a prisão de Gilson, quando ele tinha 38 anos Imagem: Arquivo Pessoal

"Troquei meus filhos por cachaça"

Uma vez, eu estava esperando eles passarem e um conhecido veio com uma pedra de crack numa mão e um corote na outra. Falei para ele esperar, ia falar com meus filhos, mas ele disse que eu tinha que escolher. E eu escolhi a cachaça.

Troquei meus filhos pela cachaça.

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A partir daí, não me lembro de muita coisa. Falava sozinho pelas ruas, tinha apagões, contraí HIV, fui internado 8 vezes em clínicas de reabilitação, fui preso por porte de drogas, surtava toda vez que entrava em abstinência.

Minha vida tinha acabado, era o fundo do poço.

Mas me deu um estalo e decidi me esforçar mais do que o máximo para mudar. Me internei numa clínica e, aos poucos, minha vida foi mudando. Fui para abrigo, trabalhei, passei a frequentar os Narcóticos Anônimos.

Conheci minha segunda esposa, que tem me ajudado em tudo desde que decidi me recuperar. Foi ela quem me incentivou a voltar a estudar e concluir o curso superior em assistência social.

Ela havia acabado de dar à luz um menino, que hoje é o meu filho. O meu fracasso como pai dos outros quatro é irreversível —fracassei e ponto: não fui pai, não fui presente, não fui marido, não fui nada, infelizmente. Mas tive a oportunidade de mostrar que eu posso ser um pai.

"Hoje trago a empatia"

Estou sem usar qualquer substância desde 2009. Sou pós-graduado em saúde mental, com ênfase em dependência química, e uso meu conhecimento acadêmico e a minha experiência de vida para trabalhar na recuperação de outras pessoas.

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O acompanhante terapêutico, em uma de suas palestras
O acompanhante terapêutico, em uma de suas palestras Imagem: Arquivo Pessoal

Acho que meu diferencial é a empatia que sinto por essas pessoas, eu vivi na pele o que elas vivem. A adicção é uma doença multifacetária, completamente complexa. Eu pretendo me aprofundar cada vez mais no estudo da dependência química para dar a outras pessoas a chance da esperança. Farei isso enquanto eu puder trabalhar e tiver forças."

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