"Novo genocídio pode acontecer", diz homem que inspirou filme "Hotel Ruanda"
Em 1994, os sete milhões de habitantes de Ruanda eram compostos aproximadamente por 85% de hutus e 15% de tutsis. Estes últimos, em sua maioria, pertenciam à elite do país, que era vista como responsáveis por grande parte das desigualdades sociais e dificuldades econômicas de Ruanda. Através do uso de propaganda e de manobras políticas, o então presidente, o hutu Juvénal Habyarimana, e seus partidários aumentavam as divisões e as tensões entre as duas etnias.
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que Habyarimana viajava foi derrubado, dando início à perseguição e ao assassinato de tutsis em todo o país. Cerca de três meses depois, mais de 800 mil pessoas haviam sido mortas, em sua maior parte tutsis, mas também hutus acusados de colaborar com a minoria. Estima-se que o genocídio de Ruanda tenha eliminado cerca de 75% dos tutsis do país.
Entre os poucos que conseguiram escapar, estão aqueles que se refugiaram no Hotel des Milles Colines, em Kigali, capital do país. Por meio de negociações, o gerente do hotel, Paul Rusesabagina, ajudou a evitar a morte de mais de 1.200 pessoas durante o genocídio, em um episódio que serviu de inspiração para o filme “Hotel Ruanda” (2004).
Em entrevista ao UOL, Rusesabagina conta como fez para sobreviver aos assassinatos e diz que novo genocídio em Ruanda "pode acontecer a qualquer hora".
UOL: Como você explica o fato de o hotel ter sido poupado dos massacres?
PR: Houve muitos fatores. Por exemplo, dizemos que em Ruanda dois homens nunca podem se sentar e conversar sem uma bebida, e às vezes eu podia oferecer bebidas para as pessoas que iam ao hotel, e essas pessoas podiam ajudar a nos proteger. Eu conversava com cada pessoa que chegava ao hotel, e a conversa sempre terminava com um acordo. Mesmo com os assassinos, eu conversava sempre com o objetivo de encontrar uma solução. Por mais duro que um coração seja, sempre há um ponto vulnerável. Então eu tentava encontrar esse ponto, para que as pessoas simpatizassem com a situação em que nos encontrávamos. E com isso, sempre conseguia um acordo.
Ajudou muito também o fato de ter uma linha telefônica no hotel capaz de fazer ligações internacionais. Eu podia ligar para a Europa, para os Estados Unidos, para as Nações Unidas.
Mas acredito que as vidas daquelas pessoas foram salvas, principalmente, por causa das palavras. Hoje, é isso que pretendo mostrar com o trabalho de minha fundação [Em 2005, Rusesabagina criou a Fundação Hotel Ruanda Rusesabagina, para ajudar vítimas do genocídio e promover a paz na região central da África]. Meu objetivo é mostrar que, por meio do diálogo, podemos alcançar a paz. Conversando, e falo isso por experiência própria, podemos resolver todos os conflitos. Durante o genocídio, eu tentei salvar as pessoas usando as palavras, porque eu não tinha uma arma.
UOL: Houve momentos em que você acreditou que não conseguiria escapar com vida?
PR: Em certo momento eu já sabia que o Milles Colines era um dos lugares mais visados do país. Porque os assassinos estavam procurando por intelectuais, políticos e empresários, e eu tinha muitos deles em meu hotel. A elite do país estava refugiada no hotel, e os hutus estavam tentando matá-los, mas sem sucesso. Eles não podiam matar as pessoas abrigadas no Milles Colines sem antes me matar. Então eles decidiram me matar. Eles me disseram isso, e eu decidi que antes que me matassem poderia fazer mais alguma pequena coisa para evitar isso. E continuei fazendo pequenas coisas. Eu estava tão desesperado, sabia que seria morto, por isso continuei fazendo o que podia a cada minuto, até o fim. Quando tudo terminou, estava surpreso ao perceber que estava vivo.
UOL: Você e sua família deixaram Ruanda logo após o genocídio?
PR: Diferente do que o filme mostra, eu não saí do país imediatamente. Fiquei em Ruanda porque tinha algumas ilusões, acreditava na paz e achava que podia ajudar a reconstruir o país. Fui embora em setembro de 1996, porque minha vida estava em risco. Decidi me mudar depois que um membro do serviço de inteligência militar foi à minha casa para me matar. Fui alertado por um grito de minha empregada e escapei por sorte. No dia seguinte, seu chefe foi ao meu trabalho e disse que o homem não estava com uma arma, que era um brinquedo. Eu sei como é uma arma, e aquele homem tinha uma. Naquela mesma tarde eu me exilei do país.
UOL: E por que pretendiam matá-lo?
PR: Por vários motivos. Um deles é que o novo governo nunca quis ajudar quem sabia demais, e eu sabia demais. Em segundo lugar, eles não queriam no país pessoas vistas como heróis ou como alguém que fez algo extraordinário. Em terceiro, eles queriam meu cargo. Eu era um gerente em uma empresa privada [Rusesabagina trabalhava para uma rede de hotelaria belga], e alguém em algum lugar queria meu cargo. Eu também era muito crítico em relação ao novo governo, que tomou o poder de assassinos e se transformou em um bando de assassinos também.
Não estou completamente seguro na Bélgica, a minha casa já foi invadida cinco vezes. Em 2005, tentaram me matar em um acidente de carro. Em 2007, o embaixador de Ruanda na Bélgica alugou uma casa atrás da minha, tentando me intimidar e monitorar meus movimentos. Tenho sido um alvo do governo há anos.
Por conta da falta de segurança, decidi levar meus filhos mais novos para estudar nos Estados Unidos, e desde 2008 divido meu tempo entre o país e a Bélgica.
UOL: Você voltou para Ruanda alguma vez?
PR: Em 2003, produtores de “Hotel Ruanda” queriam confirmar se a história do Milles Collines era verdadeira. Então em fevereiro viajei para o país com a equipe de produção do filme e começamos a entrevistar as pessoas que haviam se refugiado no hotel.
Em julho de 2004, dois meses antes da estreia do filme, voltei a Ruanda com meus filhos mais novos. Queria mostrar a eles o nosso país antes que “Hotel Ruanda” fosse lançado. Sabia que o filme retrataria a mim, um hutu, como herói, e com isso eu não poderia mais voltar a Ruanda.
UOL: O que achou do filme? A história contada foi fiel à realidade?
PR: Eu estive envolvido na produção de “Hotel Ruanda” desde o início. Passei uma semana com o ator que faria meu papel [Don Cheaddle], bebemos juntos, saímos juntos. Eu estava lá durante todas as etapas de produção do filme, exceto, pelo final que diz que deixei o país imediatamente, concordo 100% com o que foi mostrado. No entanto, em alguns momentos considero o filme menos violento do que a vida real. Porque na vida real, foi muito mais difícil e muito mais violento.
Insisti que se fizesse um filme sobre o hotel, sobre a minha vida, e não sobre o genocídio. A razão pela qual não consegui entrar em acordo com muitos cineastas e estúdios é que eles queriam retratar o genocídio, e eu queria contar uma história completamente diferente. Eu queria mostrar às pessoas como elas podem fazer a diferença em uma situação difícil.
UOL: Você acredita que pode haver um novo genocídio em Ruanda?
PR: O que aconteceu em 1994 está acontecendo agora. Você vê muitos hutus sendo mortos por tutsis hoje. Você vê hutus sendo humilhados e em algum momento eles irão buscar vingança. Pode acontecer a qualquer hora, por isso comparo Ruanda a um vulcão prestes a entrar em erupção.
Refugiados hutus estão sendo assassinados no Congo há mais de dez anos. Pessoas vulneráveis, como idosos, mulheres e crianças, que não podem fugir. Após o genocídio, começamos a ver hutus sendo espancados nas ruas, houve o massacre de Kibeho, onde milhares de pessoas em um campo de refugiados hutu foram mortas. Isso foi apenas um ano após o genocídio. Você tem um lado vencedor, os tutsis, e um lado que foi subjugado, os hutus, e criou-se uma situação de vingança que é um desastre total. Estamos muito longe de ter justiça e direitos iguais em Ruanda.
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