A pé, trocando produtos e pagando caro: como a crise cambial mudou a vida dos argentinos
Para não deixar de levar o alfajor que dá de presente aos três filhos todos os dias quando volta do trabalho, Daniel teve de fazer adaptações na rotina: passou a caminhar as 30 quadras que separam sua casa, na Grande Buenos Aires, e o trabalho, na capital do país, fugindo assim do aumento de R$ 0,30 na passagem de ônibus.
A história, de fevereiro deste ano, tornou-se emblemática na mudança na política de subsídios em curso na Argentina. Daniel virou o "papai alfajor", símbolo da retirada de aportes governamentais a serviços como transporte e gás, numa tentativa de reequilibrar os gastos argentinos.
Como resultado, as tarifas aumentam: o ônibus custava o equivalente a R$ 0,80 antes de fevereiro e passou para R$ 1,10 quando o "pai alfajor" ganhou a fama. No fim de julho, o governo anunciou aumentos graduais na passagem, que subirá 1 peso a cada mês, chegando a R$ 1,77 em outubro.
Soma-se a isso a disparada do dólar, que afeta o preço de importados e achata ainda mais o poder de compra das famílias argentinas.
Nesse contexto de crise, o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), que emprestará 50 bilhões de dólares ao país, ainda não trouxe benefícios aos bolsos da população, e o presidente argentino, Maurício Macri, vê sua pior crise de popularidade.
Segundo pesquisa divulgada pela Universidade de San Andrés, Macri tinha 37% de aprovação em junho - o índice era de 66% em outubro de 2017.
'Tarifaços'
O aumento generalizado de preços popularizou uma nova palavra no vocabulário argentino: 'tarifaço'.
Os reajustes coincidiram com a chegada do frio, quando os argentinos consomem mais gás para esquentar água para o banho, cozinhar ou aquecer seus lares.
"Minha primeira reação foi de susto, porque a conta literalmente duplicou. A solução que eu encontrei foi manter a calefação desligada quando não estou em casa, mesmo que isso signifique encontrar o apartamento gelado quando volto do trabalho", disse ao UOL o engenheiro Tomás Virzi. Ele viu a conta passar de R$ 25 para R$ 52.
Para Ezequiel Campos, que tem apartamentos alugados para estrangeiros em Buenos Aires, o aumento das tarifas influenciou diretamente seus negócios. "O que mais me impressiona foi a água: antes de 2015 eu pagava R$ 10, agora estou pagando R$ 80 por apartamento".
Para o economista do Centro de Estudos da Regulação Econômica dos Serviços Públicos da Universidade de Belgrano, Andrés Di Pelino, o governo "deveria ter realizado aumentos progressivos, graduais, nos novos preços dos serviços públicos, especialmente a energia. Deveriam ser preços razoáveis, e, acima de tudo, preços ou tarifas que os usuários tivessem condições de pagar", diz.
Pão caro e trocas
Além do reajuste das tarifas, os argentinos convivem com a alta de preço de alimentos básicos. Para chamar a atenção para o encarecimento da farinha de trigo, o Centro de Padeiros Industriais do Oeste (CIPOD) distribuiu 5.000 quilos de pão em frente ao Congresso em Buenos Aires em abril.
Até dezembro de 2015, o governo regulava o preço do trigo no mercado interno, taxando as exportações. A nova política econômica encerrou esse tipo de controle, e os produtores passaram a vender para o exterior e para a Argentina com o mesmo preço.
Preços mais altos e moeda mais fraca trouxeram de volta uma prática que tinha ganhado popularidade em 2001, os Clubes de Troca. O objetivo é recuperar o poder aquisitivo trocando mercadorias, já que o dinheiro perdeu o valor.
No interior da província de Buenos Aires, algumas comunidades voltaram a organizar esse tipo de feira.
"A única maneira de resolver uma crise é assim, trabalhar cara a cara com a comunidade", disse ao UOL Rubén Ravera, um dos fundadores da Rede Global de Troca, Ele explica que "a proposta da troca é filosófica" e tem como fim a 'não-capitalização' dos serviços que cada cidadão tem para oferecer.
Cortes no serviço público
Um decreto de Macri de 10 de julho congelou a contratação na administração pública e pode deixar sem emprego cerca de 6.000 trabalhadores a partir do ano que vem.
Isso porque, segundo o decreto, todos os contratos dos chamados funcionários de assistência técnica "deixarão de ter efeito a partir de 1º de janeiro de 2019". Contratados por universidades, eles atuam em diversos setores da máquina pública.
O decreto faz parte de plano de enxugamento do Estado anunciado recentemente pelos ministros de modernização, Andrés Ibarra, e de Fazenda, Nicolás Dujovne. As iniciativas estão no pacote de exigências do FMI para o empréstimo à Argentina.
Ao mesmo tempo, indicadores sociais no país já dão sinais de retrocesso. Um informe do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina dá conta de que 48% das crianças argentinas vivem em condições de pobreza e precisam recorrer a refeitórios públicos para fazer suas refeições.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.