Topo

A pé, trocando produtos e pagando caro: como a crise cambial mudou a vida dos argentinos

Mulher troca sapato por carteira na periferia de Buenos Aires; com dinheiro desvalorizado, Argentina vê a volta dos clubes de troca - MARTIN ACOSTA / Reuters
Mulher troca sapato por carteira na periferia de Buenos Aires; com dinheiro desvalorizado, Argentina vê a volta dos clubes de troca Imagem: MARTIN ACOSTA / Reuters

Luciana Rosa

Colaboração para o UOL, em Buenos Aires

31/07/2018 04h01

Para não deixar de levar o alfajor que dá de presente aos três filhos todos os dias quando volta do trabalho, Daniel teve de fazer adaptações na rotina: passou a caminhar as 30 quadras que separam sua casa, na Grande Buenos Aires, e o trabalho, na capital do país, fugindo assim do aumento de R$ 0,30 na passagem de ônibus.

A história, de fevereiro deste ano, tornou-se emblemática na mudança na política de subsídios em curso na Argentina. Daniel virou o "papai alfajor", símbolo da retirada de aportes governamentais a serviços como transporte e gás, numa tentativa de reequilibrar os gastos argentinos.

Como resultado, as tarifas aumentam: o ônibus custava o equivalente a R$ 0,80 antes de fevereiro e passou para R$ 1,10 quando o "pai alfajor" ganhou a fama. No fim de julho, o governo anunciou aumentos graduais na passagem, que subirá 1 peso a cada mês, chegando a R$ 1,77 em outubro.

Mapa Argentina - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL
Soma-se a isso a disparada do dólar, que afeta o preço de importados e achata ainda mais o poder de compra das famílias argentinas.

Nesse contexto de crise, o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), que emprestará 50 bilhões de dólares ao país, ainda não trouxe benefícios aos bolsos da população, e o presidente argentino, Maurício Macri, vê sua pior crise de popularidade.

Segundo pesquisa divulgada pela Universidade de San Andrés, Macri tinha 37% de aprovação em junho - o índice era de 66% em outubro de 2017. 

 1.jul.2018 - Argentinos protestam contra o que apelidaram de "tarifaços" - reajuste dos preços de serviços básicos como gás e transporte público - EITAN ABRAMOVICH / AFP - EITAN ABRAMOVICH / AFP
Argentinos protestam em 1º de julho contra o que apelidaram de "tarifaços" - reajuste dos preços de serviços básicos como gás e transporte público
Imagem: EITAN ABRAMOVICH / AFP

'Tarifaços'

O aumento generalizado de preços popularizou uma nova palavra no vocabulário argentino: 'tarifaço'. 

Os reajustes coincidiram com a chegada do frio, quando os argentinos consomem mais gás para esquentar água para o banho, cozinhar ou aquecer seus lares.

"Minha primeira reação foi de susto, porque a conta literalmente duplicou. A solução que eu encontrei foi manter a calefação desligada quando não estou em casa, mesmo que isso signifique encontrar o apartamento gelado quando volto do trabalho", disse ao UOL o engenheiro Tomás Virzi. Ele viu a conta passar de R$ 25 para R$ 52.

Para Ezequiel Campos, que tem apartamentos alugados para estrangeiros em Buenos Aires, o aumento das tarifas influenciou diretamente seus negócios. "O que mais me impressiona foi a água: antes de 2015 eu pagava R$ 10, agora estou pagando R$ 80 por apartamento".

Para o economista do Centro de Estudos da Regulação Econômica dos Serviços Públicos da Universidade de Belgrano, Andrés Di Pelino, o governo "deveria ter realizado aumentos progressivos, graduais, nos novos preços dos serviços públicos, especialmente a energia. Deveriam ser preços razoáveis, e, acima de tudo, preços ou tarifas que os usuários tivessem condições de pagar", diz. 

Mulher adquire creme dental em mercado do troca na periferia de Buenos Aires - MARTIN ACOSTA / Reuters - MARTIN ACOSTA / Reuters
15.jun.2018 - Mulher adquire creme dental em mercado do troca na periferia de Buenos Aires
Imagem: MARTIN ACOSTA / Reuters
Pão caro e trocas

Além do reajuste das tarifas, os argentinos convivem com a alta de preço de alimentos básicos. Para chamar a atenção para o encarecimento da farinha de trigo, o Centro de Padeiros Industriais do Oeste (CIPOD) distribuiu 5.000 quilos de pão em frente ao Congresso em Buenos Aires em abril.

Até dezembro de 2015, o governo regulava o preço do trigo no mercado interno, taxando as exportações. A nova política econômica encerrou esse tipo de controle, e os produtores passaram a vender para o exterior e para a Argentina com o mesmo preço. 

Preços mais altos e moeda mais fraca trouxeram de volta uma prática que tinha ganhado popularidade em 2001, os Clubes de Troca. O objetivo é recuperar o poder aquisitivo trocando mercadorias, já que o dinheiro perdeu o valor.

No interior da província de Buenos Aires, algumas comunidades voltaram a organizar esse tipo de feira.

"A única maneira de resolver uma crise é assim, trabalhar cara a cara com a comunidade", disse ao UOL Rubén Ravera, um dos fundadores da Rede Global de Troca, Ele explica que "a proposta da troca é filosófica" e tem como fim a 'não-capitalização' dos serviços que cada cidadão tem para oferecer. 

 9.jul.2018 - Em protesto contra acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em Buenos Aires, um manifestante segura placa que diz "Basta de fome" - EITAN ABRAMOVICH / AFP - EITAN ABRAMOVICH / AFP
Em protesto contra acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em Buenos Aires em de 9 julho, um manifestante segura placa que diz "Basta de fome"
Imagem: EITAN ABRAMOVICH / AFP
Cortes no serviço público

Um decreto de Macri de 10 de julho congelou a contratação na administração pública e pode deixar sem emprego cerca de 6.000 trabalhadores a partir do ano que vem.

Isso porque, segundo o decreto, todos os contratos dos chamados funcionários de assistência técnica  "deixarão de ter efeito a partir de 1º de janeiro de 2019". Contratados por universidades, eles atuam em diversos setores da máquina pública.

O decreto faz parte de plano de enxugamento do Estado anunciado recentemente pelos ministros de modernização, Andrés Ibarra, e de Fazenda, Nicolás Dujovne. As iniciativas estão no pacote de exigências do FMI para o empréstimo à Argentina.

Ao mesmo tempo, indicadores sociais no país já dão sinais de retrocesso. Um informe do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina dá conta de que 48% das crianças argentinas vivem em condições de pobreza e precisam recorrer a refeitórios públicos para fazer suas refeições.