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Fabricar armas vira meio de vida e estratégia contra recessão em Montana, nos EUA

Desde que um atirador matou 26 pessoas na escola Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, nos EUA, as páginas dos jornais de Montana estão preenchidas pelo debate sobre o controle de armas - Jessica Lowry/The New York Times
Desde que um atirador matou 26 pessoas na escola Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, nos EUA, as páginas dos jornais de Montana estão preenchidas pelo debate sobre o controle de armas Imagem: Jessica Lowry/The New York Times

Felicity Barringer

Em Bigfork, Montana (EUA)

24/02/2013 06h00

Os braços grandes e cuidadosos de Jerry Fisher seguravam um pedaço de nogueira polida, que estava envelhecendo em sua oficina como um vinho fino. A ligeira redução da largura ao longo de uma das pontas ofereceu uma dica fantasmagórica sobre seu futuro como um rifle artesanal de caça.

Suas sobrancelhas se levantavam enquanto ele explicava as propriedades do pedaço de nogueira. "Esta madeira ficará com o mesmo teor de umidade da atmosfera em que você guardá-la", disse. "Leva cinco ou seis anos para secá-la.”

O vice-presidente Joe Biden pode sentir, como disse na última terça-feira (19), que as pessoas que querem proteger suas casas o fariam melhor com uma simples espingarda. Mas Fisher, 82, tem um objetivo maior.

Ele é um fabricante cujas armas requintadas, algumas decoradas com desenhos de artistas plásticos, e têm atraído clientes de todo o mundo. Fisher aperfeiçoou o trabalho de antigos fabricantes locais, assim como os mais jovens esperam aprender com ele. Ele simboliza os valores do Vale Flathead, no noroeste de Montana, onde as pessoas crescem, relaxam e vivem cercadas por armas.

Desde o século 19, a caça tem sido um passatempo nas florestas que sobem os picos rochosos ao redor do Lago Flathead. Membros de um grupo cada vez maior de armeiros de qualidade dizem que foram as montanhas, o ar e a caça que os atraiu para lá, e não a presença de outros artesãos. Mas a reputação da área para este tipo de armeiro também a transformou num destino cada vez mais comum para a fabricação prosaica de armas e peças de armas – incluindo rifles de ponta e semi-automáticos e armas militares.

Em Kalispell, onde fica o condado de Flathead, 250 pessoas vivem de fabricar armas e peças para armas - dez vezes mais do que em 2005. Esse crescimento ajudou a mitigar os efeitos da recessão, que deu um duro golpe sobre a construção, uma grande empregadora local. Outro setor que também definhou foi o de corte de madeira.

A empresa de Clint Walker, New Evolution Military Ordnance, foi uma das mais recentes estreantes no setor nos últimos anos, juntando-se a uma lista de empresas que incluem a Montana Rifle, McGowen Precision Barrels e SI Defense.

Walker, que tinha sido editor de revistas especializadas em equipamento de vídeo, disse que a Montana Rifle estava "fazendo literalmente dezenas de milhares de canos de espingarda" para as grandes fabricantes de armas do leste. "Eles precisam desacelerar e parar o que estão fazendo para nos ajudar", disse ele. "E fizeram isso. Eles disseram: 'Vocês são locais. Vocês são da família'.”

"Isso é uma grande parte do sucesso desta área", acrescentou Walker.

Para fornecer mãos treinadas para empresas como essas, a Faculdade Comunitária de Flathead Valley inaugurou um curso de armeiros no verão passado. Os alunos aprendem tudo desde esvaziar a arma até verificar um estoque – a esculpir finos recortes atrás do gatilho, tanto para decoração quanto para proporcionar uma aderência forte.

Jane A. Karas, um ex-morador de Nova York que é presidente da escola, diz que o programa "se concentra na manufatura que mantém os valores históricos” da área. Sua colega Susan Burch, que trabalhou com um armeiro transplantado de Oklahoma, Brandon Miller, para ministrar o curso, acrescentou: "Você está olhando para a intersecção entre arte e o ar livre."

Homicídios com armas de fogo são relativamente raros na região. Houve seis assassinatos em Kalispell (que tem uma população de 20 mil habitantes) nos últimos 12 anos, disse Roger Nasser, chefe de polícia local. Seus oficiais nunca se surpreendem ao parar um carro por causa de uma infração de trânsito e encontrar uma arma dentro – e raramente se dão ao trabalho de discutir o assunto, muito menos de confiscá-la. As leis de posse de armas em Montana estão entre as menos restritivas do país.

As armas não são permitidas nas salas de aula, mas têm sido usadas para arrecadar dinheiro para elas. No outono passado, a escola cristã Stillwater ganhou mais de US$ 20 mil quando sua associação de pais e mestres realizou um sorteio de um rifle de assalto semi-automático AR-15 doado por Walker, pai de duas jovens alunas de lá.

"Quando fizemos o evento para arrecadar fundos, não passou pela minha cabeça: 'Uau, estamos doando um rifle de assalto para arrecadar dinheiro para uma escola'”, disse ele. “Foi simplesmente: 'Este é um dos rifles mais vendidos nos EUA'.”

Butch Hurlbert, cuja filha e a neta adolescente foram mortalmente baleadas perto de Kalispell no Natal de 2010, culpa o assassino – o ex-namorado de sua filha – e a polícia, e não a arma. Ter uma arma, segundo ele, "é simplesmente uma coisa normal”.

"Minha neta que foi assassinada, ela tinha seu próprio rifle de caça .270", acrescentou Hurlbert. "Aquele seria o terceiro ano que ela estava caçando. Ela matou dois alces. E ela mesma montou os chifres.”

Certamente Kalispell não é imune às mudanças trazidas pelas pessoas que não possuem armas e visitam o local pela paisagem, o esqui, a caminhada e a coesão da comunidade. Mas a maioria dos debates sobre o controle de armas aqui colocam os proprietários de armas e apoiadores da Segunda Emenda uns contra os outros.

Desde que um atirador matou 26 pessoas em dezembro na escola de ensino fundamental Sandy Hook em Newtown, Connecticut, as páginas de dois veículos locais de notícias, The Flathead Beacon e The Daily Inter Lake, estão preenchidas pelo debate quanto ao controle de armas.

Um texto do The Beacon escrito por Bob Brown, um republicano e ex-presidente estadual do Senado, convocava os proprietários de armas para tomarem novamente a Associação Nacional de Rifle, que, segundo ele, havia sido “sequestrada e radicalizada”.

Comentários online ficaram quase igualmente divididos entre aqueles que concordaram e os que condenam Brown. Os pontos de vista opostos foram destilados neste comentário: "Enquanto os americanos forem capazes de se armar corretamente, nunca haverá uma 'revolução cultural' que leve 60 milhões de vidas, como a que houve na China. Um homem desarmado não é um homem, é um escravo de seus opressores.”

Rifles de assalto semi-automáticos estão sendo bastante vendidos agora. Walker, da New Evolution Military Ordnance, possui vários.

Quando três homens tentaram roubar seu caminhão há alguns meses, disse, ele os assustou com o revólver de sua mulher; ele tinha deixado seus rifles de assalto na garagem. Mas, ele disse, “se eu tivesse que defender a mim e à minha família, não há dúvida de que eu escolheria o meu rifle de assalto. Não há dúvida de que eu preferiria uma câmara com 30 tiros.”

Walker acrescentou: "Numa situação defensiva, nem toda bala vai encontrar o seu destino."

Para Lee Helgeland, 65, um armeiro sofisticado que, como seu amigo Fisher, vive no interior do país, o aumento de armas de assalto tem sido um desenvolvimento problemático, mas compreensível dada a admiração generalizada por tudo o que é militar.

"Nós crescemos com segurança armada sendo repetida para nossas mentes quando éramos crianças", disse Helgeland, que se mudou de Idaho, onde era gerente de vendas numa grande empresa de alimentos. "É um problema – o uso indevido das armas de fogo – sem solução."

"Há uma grande distância entre o mundo das armas que eu fabrico e o criminoso que utiliza as semi-automáticas e os especiais de sábado à noite", disse ele, acrescentando: “a atitude urbana, a atitude das pessoas anti-armas, é baseada na falta de familiaridade com o uso de armas de fogo nesta parte do mundo”.