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Com exumações, América Latina busca a verdade para esclarecer o passado

Simon Romero

No Rio De Janeiro

18/10/2013 06h00

Logo após o golpe militar de 1973 no Chile, o poeta, diplomata e ganhador do Prêmio Nobel Pablo Neruda foi encontrado morto. Embora durante muito tempo todos tenham acreditado que ele tivesse morrido de câncer de próstata, recentemente um juiz ordenou que seus restos mortais fossem exumados de um túmulo com vista para o oceano Pacífico para investigar as alegações de que ele teria sido envenenado.

No mesmo ano em que ocorreu o golpe no Chile, soldados da República Dominicana executaram Francisco Caamaño, líder guerrilheiro e ex-presidente do país. Recentemente, quatro décadas após Caamaño ter sido morto, legistas desenterraram seus supostos restos mortais na esperança de identificá-los e depositá-los no panteão dos heróis da República Dominicana.

Os fantasmas também estão se revirando no Brasil, num momento em que as autoridades analisam alegações de que dois ex-presidentes civis, João Goulart e Juscelino Kubitschek, foram assassinados em 1976. Na falta de provas, os investigadores dizem que, em breve, exumarão Goulart para determinar se ele foi envenenado por espiões enquanto vivia seu exílio na Argentina. Os investigadores também vão exumar o motorista de Kubitschek para determinar se um franco-atirador causou o acidente de carro que matou os dois.

País após país, a América Latina vem passando por uma onda de exumações, que reflete não apenas a dificuldade que algumas figuras políticas têm para encontrar a paz na vida após a morte, mas também a disposição da região para ressuscitar questões não resolvidas relacionadas à sua história --mesmo que essa disposição envolva, literalmente, o hábito de desenterrar o passado.

“Nos países onde a história não foi totalmente esclarecida, os mortos heroicos continuam falando”, disse Lyman Johnson, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte, que tem explorado a tradição das exumações na América Latina.

O recente ciclo de exumações aponta para padrões primitivos vigentes na região, que tem como tradição desenterrar os cadáveres de pessoas proeminentes e submetê-los a um escrutínio extremamente intrusivo, enquanto defende que o exercício se destina a fins políticos.

Alguns centros tradicionais da febre das exumações, como o México, se acalmaram um pouco nos últimos anos. Na década de 1920, os líderes mexicanos costumavam exumar grandes figuras da Guerra da Independência e colocá-las em monumentos. O México também encerrou seu frenesi, observado durante a década de 1940, sobre os questionamentos acerca dos restos mortais do governante asteca Cuauhtémoc e do conquistador espanhol Hernán Cortés.

Agora, outros países, entre os quais o Chile --que está na vanguarda desse movimento--, parecem estar continuando de onde o México parou. Salvador Allende, presidente chileno deposto durante o golpe de 1973, foi exumado em 2011 para que os investigadores pudessem determinar se ele cometeu suicídio ou se foi morto por seus adversários quando eles invadiram o palácio presidencial. Eles concluíram que Allende se matou com um rifle de assalto AK-47, confirmando a história oficial.

A exumação anterior realizada pelo Chile, em 2004, envolveu Eduardo Frei Montalva, presidente entre 1964 e 1970, e produziu resultados notáveis que incentivaram novas exumações no país e para além dele. Embora os médicos tivessem dito inicialmente que Frei Montalva morreu em 1982 devido a complicações após uma cirurgia para tratar uma doença de estômago, os investigadores concluíram que ele foi envenenado com pequenas doses de gás mostarda e tálio, um metal pesado altamente tóxico.

A América Latina está longe de ser a única região onde políticos e intelectuais são desenterrados, como ficou demonstrado pela exumação, em 2012, do líder palestino Yasser Arafat para examinar denúncias de envenenamento, e pelas tentativas da Espanha para localizar e identificar os restos mortais do poeta Federico García Lorca e de outras pessoas que foram mortas durante a Guerra Civil Espanhola.

Mas, quer seja para solucionar os mistérios da morte ou para promover histórias de heroísmo, a América Latina é uma região onde a prática de desenterrar os mortos e, às vezes, até de mutilar seus restos mortais, tem sido um elemento constante do jogo político. Estudiosos dizem que a prática pode representar a continuidade secularizada dos costumes vigentes à época dos primórdios do cristianismo, quando partes dos corpos dos santos movimentavam um mercado comercial vibrante.

O Brasil, maior país da América Latina, tem seus próprios precedentes, que incluem o transporte de restos mortais pelo Oceano Atlântico para reforçar a narrativa da emergência do país como uma nação independente. Na década de 1930, o regime autoritário de Getúlio Vargas recolheu os restos mortais dos inconfidentes --que participaram de um movimento separatista no século 18-- de seus locais de sepultamento na África, onde eles morreram no exílio, e os enterrou no Estado de Minas Gerais.

E, em 1972, os governantes militares exumaram Dom Pedro 1º --o primeiro imperador do Brasil independente-- em Portugal e transferiram seus restos mortais para um monumento em São Paulo (curiosamente, essa operação de transferência não incluiu o coração de Dom Pedro 1º, que continua em uma igreja na cidade do Porto, em Portugal, conforme o imperador solicitou em seu testamento).

Dom Pedro 1º foi removido de sua cripta imperial mais uma vez este ano para servir como objeto de estudos científicos --estudos possibilitados pelos avanços nas áreas de análise bioquímica e de exames de DNA. Outras exumações realizadas na América Latina envolvem o uso desses métodos para se aprofundar em mistérios mais recentes, como é o caso de Goulart, o presidente deposto por um golpe apoiado pelos Estados Unidos em 1964.

Mencionando o depoimento de um ex-agente da inteligência uruguaia, a família de Goulart afirma que ele não morreu no exílio na Argentina, aos 58 anos, devido a um ataque cardíaco, como foi relatado em 1976, mas sim envenenado por agentes da Operação Condor, campanha conjunta levada a cabo pelas ditaduras militares da América do Sul durante os anos 1970 e 1980, que se uniram para sequestrar e assassinar dissidentes políticos.

“Tudo nos leva a crer que ele foi assassinado”, disse João Vicente Goulart, 56, empresário que é filho do ex-presidente. “Tudo de que precisamos são provas.”

A Comissão da Verdade que está examinando os abusos da longa ditadura brasileira está se preparando para exumar Goulart. A iniciativa é apoiada até mesmo por aqueles que não concordam com a teoria de que ele foi envenenado.

“Os restos mortais dele devem ser examinados, mesmo que apenas para acabar com as teorias da conspiração e permitir que ele descanse em paz”, disse Iberê Athayde Teixeira, escritor de São Borja, cidade do sul do Brasil onde Goulart está enterrado.

Ecoando as recentes experiências do Chile, algumas das novas exumações realizadas no Brasil, embora enraizadas na história política questionada, têm um caráter diferente de algumas das exumações realizadas em décadas passadas.

“Este é um regime democrático que está finalmente aceitando seu passado”, disse Kenneth Maxwell, historiador britânico e colunista do jornal Folha de S. Paulo. “Esse processo não tem como objetivo a criação de mitos. Ele é uma tentativa de descobrir um passado que, por vezes, foi muito desagradável.”