Topo

Rapto de meninas, um ato que nem a Al Qaeda tolera

Abubakar Shekau, que assumiu a liderança do Boko Haram em 2010 e tornou o grupo ainda mais violento - AFP
Abubakar Shekau, que assumiu a liderança do Boko Haram em 2010 e tornou o grupo ainda mais violento Imagem: AFP

Adam Nossiter e David K. Kirkpatrick

Em Abuja (Nigéria)

08/05/2014 20h50

Enquanto se espalhava pelo Twitter e pelo Facebook a notícia de que militantes nigerianos estavam preparando o leilão em nome do islã de mais de 200 estudantes sequestradas, uma rede muito diferente na internet também começou discretamente a se agitar.

"Essa notícia é espalhada para manchar a imagem dos mujahedeen", escreveu um usuário em um grupo na internet usado por militantes islâmicos --o administrador usa uma foto de Osama Bin Laden. "Eu tenho irmãos da África que fazem parte desse grupo", atestou outro, insistindo que são como "o Alcorão caminhando pela terra".

O Boko Haram, o grupo nigeriano semelhante a um culto que realizou os sequestros, foi rejeitado há muito tempo por sábios muçulmanos e partidos islâmicos de todo o mundo por sua crueldade aparentemente sem sentido e violência caprichosa contra civis. Mas, nesta semana, o sequestro impressionante pareceu ser demais até mesmo para militantes normalmente ávidos em apoiar atos terroristas contra o Ocidente e seus aliados.

"Há a notícia de que eles atacaram uma escola de meninas!" escreveu outro usuário anônimo no mesmo grupo jihadista, sugerindo delicadamente que o Boko Haram esteja matando civis demais em vez de inimigos armados. Ele rezava para que Deus os mantivesse “firmes no caminho" do islã.

O desalento de pares jihadistas com os alvos inocentes da violência do Boko Haram é um reflexo das redes cada vez mais distantes e ideologicamente díspares de militância islâmica, que agora incluem os remanescentes dos campos puritanos de Bin Laden, contrabandistas de cigarro argelinos e uma ramificação brutal somali.


"A violência que a maioria dos grupos rebeldes africanos pratica faz a Al Qaeda parecer um bando de menininhas", disse Bronwyn Bruton, estudioso africano do Conselho Atlântico, em Washington. "E a Al Qaeda a esta altura é uma marca --e basicamente apenas uma marca--, de modo que é preciso se perguntar como ela lidará com pessoas que fazem coisas tão hediondas que nem mesmo os líderes da Al Qaeda estão dispostos a tolerar", continuou.

O Boko Haram é, de muitas formas, um aliado incômodo para qualquer um deles. Sua violência é mais ampla e mais casual do que a da Al Qaeda ou outros grupos jihadistas. De fato, sua reputação de assassinatos em massa de civis inocentes é inconsistente com o atual esforço dos líderes da Al Qaeda de evitar essas mortes, por temerem alienar potenciais apoiadores. Isso foi assunto da disputa que levou ao recente rompimento da Al Qaeda com seu ex-afiliado, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

Formado inicialmente no início dos anos 2000, o Boko Haram nasceu de um movimento islâmico ultraconservador de estudantes de alta escolaridade. O grupo se tornou abertamente político apenas depois, sob a liderança de seu fundador carismático, Mohamed Yusuf.

Seu apelido na língua africana hausa costuma ser traduzido como educação "ocidental" (ou "enganadora") é "proibida". Mas estudiosos dizem que o nome tem duplo significado, ao mesmo tempo religioso e social, no contexto do norte da Nigéria.

A educação ocidental estava disponível apenas para uma elite muito pequena, que geralmente viajava para as universidades britânicas e então voltava para governar da capital o norte empobrecido. E colocar um fim à tirania dessa elite era o principal objetivo do movimento de Yusuf.

Yusuf e o Boko Haram exploravam a crescente revolta entre os nigerianos do norte com sua pobreza e falta de oportunidades, assim como os abusos humilhantes cometidos pelas forças de segurança do governo, disse Paul Lubeck, um professor da Universidade da Califórnia que estuda o grupo. No início, mesmo enquanto o Boko Haram recorria a uma oposição violenta ao governo, o grupo evitava atacar civis.

"Eles conquistaram grande apoio por não matarem muitos inocentes", disse Lubeck.

Isso mudou em julho de 2009, após cerca de 70 combatentes do Boko Haram armados com granadas de mão e armas atacarem uma mesquita e uma delegacia de polícia na cidade de Bauchi. Aproximadamente 55 pessoas foram mortas na batalha, segundo um cabograma diplomático sobre os episódios divulgado posteriormente pelo "WikiLeaks".

No dia seguinte, as forças de segurança nigerianas retaliaram com uma repressão brutal que matou mais de 700 pessoas, incluindo muitos transeuntes inocentes. Os oficiais de segurança exibiram Yusuf para as câmeras de TV e então o executaram sumariamente diante de uma multidão em frente de uma delegacia de polícia --um episódio que os seguidores do grupo lembram com horror, como o momento decisivo em que se voltaram para uma violência mais ampla.

No final de 2010, sob a nova liderança de Abubakar Shekau, antes o segundo em comando do grupo, o Boko Haram começou a realizar ataques mais letais.

Em vez de atirar granadas de mão ou bombas de gás, os combatentes do Boko Haram deram início a uma campanha de assassinatos por armas de fogo disparadas de motocicletas --o governo acabou proibindo motocicletas nas áreas onde o grupo era ativo. Eles também dirigiam picapes montadas com artilharia. Os veículos, disseram autoridades nigerianas, foram trazidos da Líbia após a queda de Muammar Gaddafi.

E o Boko Haram se tornou cada vez mais indiscriminado. Shekau, o líder que alegava se comunicar com Deus, disse que o único propósito de sua violência era demonstrar a incapacidade do Estado nigeriano. "Shekau iniciou a morte brutal de inocentes", disse Lubeck.

Bruton, do Conselho Atlântico, disse: "O sujeito é desequilibrado".

Shekau também continuou expressando sua admiração pela Al Qaeda e sua ideologia. Mas ele permanece "um grupo focado localmente, recrutando localmente", disse Lubeck, acrescentando: "Dizer que ele faz parte de uma conspiração islâmica internacional distorce as coisas. Não há conexão sistemática, nem estratégica".

Na quarta-feira, enquanto os governos ocidentais se preparavam para enviar ajuda para encontrar as meninas sequestradas, não havia nenhuma expressão de apoio da Al Qaeda ao Boko Haram.

Boko Haram assume sequestro de alunas e ameaça vende-las