Topo

Multas de trânsito e por conduta "inadequada" bancariam o EI sem petróleo

Em foto de 8 de fevereiro de 2015,  membro da polícia de trânsito do grupo Estado Islâmico multa um taxista em Raqqa - AP
Em foto de 8 de fevereiro de 2015, membro da polícia de trânsito do grupo Estado Islâmico multa um taxista em Raqqa Imagem: AP

Matthew Rosenberg, Nicholas Kulish e Steven Lee Myers

01/12/2015 06h00

Três vezes por mês, Mohammad al-Kirayfawai entrega US$ 300 (cerca de R$ 1.200) aos combatentes do Estado Islâmico (EI) em troca do privilégio de dirigir seu caminhão refrigerado cheio de sorvetes e outros produtos perecíveis da Jordânia até uma parte do Iraque onde os militantes estão firmemente no comando.

Os combatentes que controlam o posto de fronteira consideram o pagamento uma taxa de importação, e não uma propina. Eles até oferecem um recibo carimbado com o logotipo e o selo do EI, do qual Al-Kirayfawai, 38, precisará para passar pelos outros postos de controle em sua rota de entregas.

Caso se recuse a pagar, a fachada de normalidade rapidamente desmoronará. "Se eu não pago, eles me prendem ou queimam meu caminhão", explicou o motorista.

Em amplas extensões da Síria e do Iraque, o EI, com o objetivo de formar um governo de credibilidade, montou uma burocracia predatória e violenta que arranca até o último dólar, dinar iraquiano ou libra síria que puder daqueles que vivem sob seu controle ou passam por seu território.

Entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas que vivem na área controlada pelo EI ou escaparam recentemente dela e autoridades ocidentais e do Oriente Médio que acompanham as finanças da milícia dizem que o grupo extorque taxas e multas de trânsito; aluguéis de edifícios do governo; contas de fornecedoras de água e eletricidade; impostos de renda, sobre colheitas e gado; e multas por fumar ou usar as roupas erradas.

Os ganhos dessas práticas que imitam um Estado tradicional perfazem dezenas de milhões de dólares por mês, aproximando-se de US$ 1 bilhão por ano, segundo estimativas de autoridades americanas e europeias. E esse fluxo de renda até agora se mostrou geralmente imune às sanções e aos ataques aéreos.

"Eles lutam de manhã e cobram taxas à tarde", disse Louise Shelley, diretora do Centro sobre Terrorismo, Crime e Corrupção Transnacionais na Universidade George Mason.

A mais conhecida das fontes de renda do EI --contrabando de petróleo, saque a cofres de bancos e antiguidades, resgate de estrangeiros sequestrados e doações de apoiadores ricos no golfo Pérsico-- ajudaram a fazer do grupo possivelmente a organização militante mais rica do mundo. Mas, conforme as autoridades ocidentais e do Oriente Médio adquiriram uma melhor compreensão das finanças do EI ao longo do último ano, surgiu um amplo consenso de que a maior fonte de dinheiro dos militantes parecem ser as populações que eles dominam e as empresas que controlam.

Após os ataques em Paris este mês, os EUA visaram de maneira mais agressiva a produção de petróleo e as operações de contrabando dos militantes, que os americanos haviam evitado por temerem infligir danos duradouros às economias do Iraque e da Síria. Aviões americanos atingiram este mês um comboio de caminhões-tanques de petróleo no leste da Síria, destruindo 116 veículos.

Mas muitas autoridades e especialistas dizem que o EI provavelmente poderia cobrir seus custos mesmo sem a receita do petróleo, e que enquanto ele controlar amplas áreas do Iraque e da Síria, incluindo grandes cidades, será necessário mais que explodir caminhões-tanques para levar o grupo à falência.

"Tudo isso serão pequenas alfinetadas no financiamento do EI, a menos que se possa tirar dele suas bases de receita, e isso significa o território que ele controla", disse Seth Jones, um especialista em terrorismo na Rand Corporation.

No interior desse território, o EI assumiu as operações legítimas de coleta de receita dos governos que usurpou. E usou uma ameaça constante de violência para extrair o máximo possível das populações, empresas e propriedades que hoje controla.

No bairro de Bab al-Tob em Mosul, no Iraque, por exemplo, os militantes transformaram uma delegacia que datava da era otomana, no século 19, em um mercado com 60 lojas que vendem frutas e legumes. O aluguel anual de um box no mercado custa 2,8 milhões de dinares iraquianos (aproximadamente US$ 2.500, ou R$ 10 mil).

Em Raqqa, cidade síria que hoje é a capital de fato do Estado Islâmico, há um departamento chamado Diwan al-Khadamat, ou Escritório de Serviços, que envia autoridades aos mercados da cidade para coletar uma taxa de limpeza de cerca de US$ 7 a 14 por mês, dependendo do tamanho da loja. Os moradores vão a pontos de coleta para pagar suas contas mensais de água e eletricidade, aproximadamente US$ 2,50 para eletricidade e US$ 1,20 para água.

Outro departamento do EI, Diwan al-Rikaz, ou Escritório de Recursos, supervisiona a produção e o contrabando de petróleo, o saque de antiguidades e uma longa lista de empresas hoje controladas pelos militantes. Ele opera usinas de engarrafamento de água e refrigerantes, oficinas têxteis e de móveis e companhias de telefone celular, assim como fábricas de tijolos, cimento e químicas, obtendo recursos de todas elas.

O EI também exige uma parte das receitas obtidas por pequenas empresas. "Pagamos em azeite ou em dinheiro, dependendo da produção", disse Tarek, um sírio que vive em Beirute e apoia o governo do presidente Bashar al Assad. Ele pediu para ser identificado só pelo primeiro nome porque seus pais ainda vivem e trabalham na fazenda da família em Al Bab, área controlada pelo EI perto da cidade de Aleppo, na Síria.

As autoridades do autodenominado califado não gostam do termo "imposto", preferindo a palavra islâmica "zakat", que se refere às esmolas que os muçulmanos são obrigados a pagar. Embora a norma fosse de 2,5% da renda de uma pessoa, segundo as interpretações típicas da lei islâmica, os militantes estão cobrando 10%, justificando a alta porcentagem por ser um "país em tempo de guerra", segundo um jornalista em Raqqa que por segurança pediu para ser identificado apenas como Abu Mouaz.

O grupo assumiu a coleta de taxas de registro de carros e faz os estudantes pagarem pelos livros de estudo. Ele até multou pessoas que dirigiam carros com lanternas traseiras quebradas, prática quase inédita nas ruas e estradas do Oriente Médio.

As multas também fazem parte dos castigos dispensados a quem burla as rígidas regras de vida impostas pelo EI. Fumar é estritamente proibido, por exemplo, e Mohammad Hamid, 29, disse que quando foi apanhado fumando um charuto em sua loja em Mosul no final de agosto "o EI não apenas me chicoteou 15 vezes em público, como me obrigou a pagar uma multa de 50 mil dinares" (cerca de US$ 40) na época. Logo depois ele fugiu para uma área curda do Iraque.

Ao todo, algumas autoridades estimam que o Estado Islâmico esteja extraindo até US$ 800 ou 900 milhões (cerca de R$ 3,5 bilhões), talvez mais, de moradores e empresários no território que controla.

Isto além das receitas do contrabando de petróleo, estimadas em mais US$ 500 milhões. O grupo também obtém mais dezenas de milhões de dólares de outras fontes de renda, como sequestros, e saqueou aproximadamente US$ 1 bilhão de bancos nas cidades que dominou, incluindo US$ 675 milhões só em Mosul, embora esta seja uma fonte de renda única.

Em curto prazo, as autoridades americanas e europeias estão lutando para cortar as receitas do grupo. Mas a antiga estratégia de deter o fluxo de dinheiro para grupos terroristas como a Al Qaeda, que se baseava amplamente em isolá-los de doadores no Golfo dos quais dependiam, não se aplica ao Estado Islâmico.

"Eles extraem grande parte de seus recursos internamente, de modo que os instrumentos mais tradicionais para atacar as finanças do terrorismo que usaríamos para cortar as fontes de renda de uma organização, por exemplo no caso da Al Qaeda, não se aplicam neste caso", disse Daniel Glaser, secretário-assistente do Tesouro para financiamento terrorista. "Eles não dependem de doadores."

Em longo prazo, segundo as autoridades americanas, a maneira mais segura de restringir significativamente as finanças do grupo será retomar o território que ele controla, algo que até agora foi dolorosamente lento, apesar dos milhares de ataques aéreos realizados.

"A única maneira segura de tirar sua riqueza, sua base de renda, é pela força militar", disse uma autoridade graduada dos EUA, sob a condição de anonimato para discutir questões de segurança.