No Canadá, avanço de incêndio florestal transforma cidade pujante em cinzas
Fort McMurray, ou "Fort Make Money" (Forte Ganhar Dinheiro), como alguns canadenses a apelidaram durante seus anos recentes de sucesso econômico, era o tipo de lugar atraente por causa das boas oportunidades profissionais e dos contracheques gordos.
Os que se estabeleceram lá eram engenheiros competentes, refugiados de países devastados pela guerra e batalhadores de todo o Canadá e outros lugares, atraídos para um ponto no mapa no norte do Estado de Alberta, uma cidade escavada na floresta boreal em uma região pujante com a riqueza do petróleo, no oeste do Canadá.
Mesmo depois que o preço do cru começou a cair, no final de 2014, eliminando milhares de empregos, muitos moradores conseguiram se manter, apertando os cintos enquanto esperavam a volta dos bons tempos.
Então, no início da semana passada, fumaça e cinzas encheram o céu, os primeiros sinais de um incêndio natural catastrófico que avançava para a cidade. Toda a população de cerca de 88 mil pessoas foi obrigada a deixar a área, a maioria em uma corrida frenética.
Desde então, o fogo consumiu áreas inteiras de Fort McMurray, tornando-se um dos incêndios mais devastadoras da história do país. As chamas em rápido avanço transformaram muitas casas --e as fotos de família e outros tesouros que não puderam ser embalados a tempo-- em pouco mais que carvão.
Chamas enormes arrasaram bairros inteiros, deixando para trás chaminés calcinadas pairando sobre as cinzas de antigas salas de estar. Muitos moradores lamentaram a perda do restaurante Denny's, que fora um popular ponto de encontro antes que se evaporasse no calor infernal.
Até agora não há notícia de mortes em consequência do incêndio, o que muitos consideram um milagre.
Enquanto os moradores deslocados pedem indenizações do seguro e escolhem entre pilhas de roupas doadas, muitos insistem em reconstruir a cidade que lhes deu uma segurança financeira tão rara quanto a fonte de sua prosperidade, as maiores reservas de areia betuminosa do mundo.
Fort McMurray "é o único lugar onde você pode enterrar dez anos da sua vida e ganhar o suficiente para se aposentar", disse Evin Lewis, 55, dono de uma empresa de transporte. Ele fugiu para um centro de evacuados aqui em Lac La Biche, a cerca de 220 km ao sul, em sua caminhonete, levando apenas a carteira e a roupa do corpo.
Por enquanto, as temperaturas mais baixas permitiram que os bombeiros dominassem em parte o fogo, que se desviou da cidade. Mas ainda consome uma floresta próxima e permanece o risco de que ele volte à cidade.
Até que ambientalistas contestassem o oleoduto Keystone XL nesta década, a cidade e as reservas de areias betuminosas de Alberta eram pouco conhecidas fora do Canadá e das companhias de petróleo do mundo. Mas as tentativas de transformar seus depósitos de betume em combustível remontam a décadas, e as fortunas de Fort McMurray subiram e desceram com elas.
Seu primeiro êxito moderno foi nos anos 1970, quando o governo decidiu apostar nas areias oleosas difíceis de explorar e bilhões de dólares fluíram para a região. Isto terminou de repente, quando o preço do petróleo caiu nos anos 1980 e as areias subitamente pareceram uma curiosidade agonizante.
O último boom, e muito maior, ocorreu na última década, aproximadamente, quando a demanda global por petróleo aumentou puxada pela ascensão da China e as companhias passaram a empregar tecnologia mais eficiente para extrair óleo das areias.
Fort McMurray, que começou como um posto de comércio de peles nos anos 1800, nunca foi tão bonita quanto a floresta que a rodeia. O centro, que até agora escapou do incêndio, é uma cápsula do tempo arquitetônica dos anos 1970, cheia de prédios baixos construídos às pressas.
E mesmo no melhor momento a cidade dá uma sensação de comunidade universitária, em que a maioria dos empregos nas grandes companhias de petróleo tornava-se o que os moradores chamam de "vaivém".
Esses funcionários vinham de todo o Canadá, e depois de pousar no aeroporto de Fort McMurray eram imediatamente levados de ônibus por seus empregadores para acampamentos mais próximos dos projetos de areias betuminosas, onde trabalhavam em turnos de duas semanas antes de voltar para casa.
Ainda assim, com tantos empregos em soldagem, construção e transporte, a população inchou de 38 mil em 2000 para mais de 90 mil em seu apogeu. Terrenos que custavam 27 mil dólares canadenses (R$ 74 mil) por acre (cerca de 4 mil m2) na virada do milênio chegaram a 1 milhão de dólares canadenses (R$ 2,7 milhões), enquanto novos loteamentos avançavam cada vez mais fundo pelas florestas de pinheiros.
"Médicos e advogados não ganham tanto quanto nós", disse Chad Abbott, 50, supervisor de uma empresa de andaimes.
Abbott mudou-se para Fort McMurray em 1998 com sua família e trabalhou em uma usina de betume ganhando cerca de 250 mil dólares canadenses (R$ 690 mil) por ano. Ele fazia parte de uma comunidade unida da cidade, composta principalmente de empregados em serviços de petróleo, trabalhadores e engenheiros do ramo, muitos dos quais perderam tudo o que possuíam.
Inicialmente, durante o boom mais recente, Fort McMurray aprovou que grande parte da força de trabalho ficasse nos acampamentos distantes. Mas a falta de conexão desses trabalhadores com a cidade, assim como a falta dos dólares que gastariam lá-- acabou provocando ressentimento.
"No começo eles não queriam os trabalhadores na cidade porque eles trariam toda a confusão que você imagina no Velho Oeste", disse Stephen Ross, presidente da imobiliária Devonian Properties, que começou a comprar terrenos no lugar em 2000.
A cidade não conseguiu manter à distância os costumes escusos: durante algum tempo, uma série de clubes de strip-tease fez bons negócios. Mas ao longo dos anos Fort McMurray aparou as arestas. Seus bairros se encheram com uma mistura de sotaques e nacionalidades, de habitantes da Terra Nova [leste do Canadá] e filipinos empregados em hotéis e postos de gasolina e motoristas de máquinas pesadas de Fiji.
Antes do incêndio, o número de casas de strip-tease tinha se reduzido para apenas um, o Showgirls, perto do fim da principal via da cidade, a Franklin Avenue. A vários quarteirões dali, a mesquita Markaz ul Islam, de cúpula verde, havia se tornado pequena demais para as orações da sexta-feira, obrigando a multidão a usar o ginásio de uma escola católica próxima.
Samya Hassan, 51, uma refugiada do Iêmen que usa o lenço hijab, veio para o Canadá em 1990 e se assentou em Fort McMurray há quatro anos com sua família. Eles prosperaram. Seu marido conseguiu um emprego como motorista de caminhão e ela como caixa, o suficiente para pôr os três filhos na escola.
Tudo acabou na terça-feira (3), quando ela e sua família fugiram. O fogo rugia ao lado da estrada enquanto eles se arrastavam na enorme fila de carros. Ela usou seu lenço de cabeça para respirar entre a densa fumaça preta que escondia o sol.
Hassan conseguiu pegar seu passaporte, mas não as fotos da família. "Terei de recomeçar a vida, como 25 anos atrás", disse ela.
Para os inúmeros moradores desalojados, as coisas perdidas que o dinheiro não pode comprar são as mais valiosas. Ariana Caissie, 22, levou seus dois gatos, mas disse que as receitas de seu pai, já falecido, se perderam porque sua mãe não teve tempo de salvá-las. "Agora são só memórias", afirmou.
Os residentes, inclusive políticos locais, estão decididos a reconstruir, mas restam perguntas sobre o que será Fort McMurray. "Dependendo do que conseguirmos sonhar --e realmente fazer--, é um mundo totalmente novo", disse a prefeita Melissa Blake em uma entrevista.
Adam Rairdon, um ex-chefe de cozinha, tinha investido muito em Fort McMurray para ir embora. Depois de gastar cerca de US$ 20 mil (R$ 70 mil) para estudar radiografia industrial, ele deixou Halifax, na Nova Escócia [leste do país], com sua mulher, Laura, há quatro anos e encontrou emprego na cidade pujante.
Cerca de um mês antes que os preços do petróleo começassem a cair, eles compraram uma casa e começaram a reformá-la.
Rairdon, que deixou o emprego para trabalhar na casa, lembra que ouviu no rádio as notícias da queda dos preços do petróleo enquanto derrubava as paredes. Naquela época, Laura Rairdon engravidou.
Em janeiro de 2015 a empresa em que Adam trabalhava começou a demitir. Diferentemente de alguns de seus colegas, ele conservou o emprego, mas perdeu cerca de um quarto do salário, como explicou diante do local de uma feira em Edmonton, hoje um lar temporário para ele, sua mulher e o bebê de 10 meses.
Adam viu um vídeo que confirmou que sua casa foi quase toda destruída. Em breve ele irá com a mulher e o filho para a casa de seus sogros em New Brunswick. Depois, disse Rairdon, comprará um trailer de segunda mão e voltará a Fort McMurray para ajudar na reconstrução.
"Assim que eles abrirem os portões, irei com uma pá e botas de trabalho e vamos limpar nossa cidade", disse. "Há muitos que provavelmente não podem, muitos que não conseguem e muitos que estão desanimados e provavelmente não irão. Mas eu só posso falar por mim mesmo, e digo que não fui derrotado."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.