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Descendentes dos Confederados americanos revivem época no interior de SP

João Leopoldo Padoveze/FestaConfederada.com.br
Imagem: João Leopoldo Padoveze/FestaConfederada.com.br

Simon Romero

Em Santa Bárbara d'Oeste, São Paulo

10/05/2016 06h00

Em um palco repleto de bandeiras da Confederação, um cantor cantava "Dixieland Delight", do grupo Alabama, perto de um obelisco em homenagem aos americanos que fugiram para cá depois da Guerra Civil.

"Não somos racistas", disse Cícero Carr, 54, um engenheiro cujo trisavô veio do Texas. Usando um chapéu exibindo a bandeira de batalha rebelde, ele explicou em português: "Estamos apenas homenageando nossos ancestrais, que tiveram o bom senso de vir para o Brasil".

Na celebração anual dos autodescritos Confederados do Brasil em um quente domingo de abril, bandeias da Confederação adornavam as saias dos vestidos das jovens damas e os bonés de caminhoneiros usados pelos motoqueiros bebedores de cerveja, assim como os túmulos de pioneiros com sobrenomes como McAlpine, Northrup e Seawright.

A comemoração reflete a resistência do que alguns historiadores chamam de última colônia da Confederação nesta região de plantações de cana-de-açúcar e indústrias têxteis. Sem se deixar afetar pelo debate transcorrendo nos Estados Unidos sobre se os símbolos da Confederação promovem o racismo, os descendentes brasileiros dos colonos americanos, muitos deles trajando uniformes da Guerra Civil, se misturam nas barracas de comida que oferecem frango frito do Sul e biscoitos de manteiga.

O lema dos organizadores: Viver e Morrer em Dixie (apelido da região Sul dos Estados Unidos).

A presença dos confederados no interior do Estado de São Paulo data de um esforço do imperador dom Pedro 2º, um ferrenho aliado dos Estados Confederados da América durante a Guerra Civil Americana, para atrair imigrantes brancos para o Brasil. Milhares de sulistas aceitaram sua oferta, mudando-se para cá nos anos 1860 e 1870.

Incapazes de se adaptarem aos altos e baixos da economia do Brasil, muitos dos colonos voltaram para os Estados Unidos. Mas outros se estabeleceram no país que foi o último nas Américas a abolir a escravidão, o fazendo em 1888, o que permitiu que alguns americanos adquirissem escravos para suas fazendas no Brasil.

Apesar dessa história, o debate nos Estados Unidos em torno dos símbolos da Confederação mal teve repercussão aqui desde que a bandeira rebelde voltou a ser alvo de ultraje no ano passado, depois que um homem armado que glorificava a bandeira massacrou nove afro-americanos em uma igreja em Charleston, Carolina do Sul.

Em vez disso, os descendentes dos confederados, que acredita-se que sejam milhares por todo o Brasil, costumam dizer que suas festividades estão dissociadas das posições polarizadoras em torno de comemorações semelhantes nos Estados Unidos.

Entre as centenas de pessoas que participaram da Festa Confederada em abril, incluindo alguns visitantes negros, a discussão em torno do significado da bandeira para os africanos escravizados mal registrava. (Brasileiros que se definem como negros ou mestiços correspondem a quase 51% da população do Brasil, segundo o censo de 2010.)

"Estou aqui porque simplesmente adoro a América", disse Sérgio Porto, um funcionário de 38 anos de uma fábrica de autopeças de caminhões que usava uma bandana confederada e uma camiseta dizendo "Hillbilly Treasure" (Tesouro Caipira). Porto explicou que faz parte de uma subcultura no Brasil que adora a cultura rural do Sul dos Estados Unidos e ouve bandas brasileiras que tocam musica country em inglês, em vez de português.

Marcelo Sans Dodson, presidente da organização que representa aqui os descendentes dos confederados, expressou suas condolências em uma declaração sobre o massacre de Charleston. Ele chamou as mortes de "um exemplo claro de intolerância".

Mesmo assim, Dodson defendeu o uso dos símbolos do Velho Sul para celebração da herança dos confederados no Brasil. "Para nós", ele disse, "a bandeira da Confederação simboliza família, unidade, fraternidade e amizade".

Confederados - João Leopoldo Padoveze/Festa Confederada - João Leopoldo Padoveze/Festa Confederada
Imagem: João Leopoldo Padoveze/Festa Confederada
Alguns confederados vão além, argumentando que os exemplos de casamentos inter-raciais em suas fileiras ao longo de gerações diluíram o legado tóxico da escravidão. Outros dizem que a proibição pelo Brasil da importação de escravos forjou um senso de independência entre os ancestrais que fugiam da devastação econômica, que não puderam trazer escravos ou que eram pobres demais para comprá-los no Brasil.


Mas alguns acadêmicos dizem que o contornar da escravidão durante a celebração da herança confederada reflete a relutância mais ampla no Brasil de examinar a imensa escala do comércio de escravos na história do país.

O Brasil recebeu mais escravos africanos do que qualquer outro país no Hemisfério Ocidental, cerca de 4,9 milhões, enquanto a América do Norte continental importou cerca de 389 mil, segundo o Banco de Dados de Comércio Transatlântico de Escravos.

Confederados - Reprodução/Facebook/Festa Confederada - Reprodução/Facebook/Festa Confederada
Imagem: Reprodução/Facebook/Festa Confederada

Historiadores que examinam o êxodo confederado dizem que alguns dos sulistas reforçaram a economia do Brasil baseada na escravidão, citando os colonos que trouxeram servos afro-americanos consigo, que na prática ainda eram escravos. E assim que chegaram ao Brasil muitos dos confederados se aproveitaram da vantagem da facilidade e baixo custo para compra de escravos.

"Há uma tentativa dos confederados de apagar o interesse na escravidão como principal motivo para a chegada deles ao Brasil", disse Luciana da Cruz Brito, uma historiadora brasileira especializada em escravidão da Universidade Municipal de Nova York.

Em um exemplo, Brito documentou um caso no qual Charles G. Gunter, um ex-deputado estadual do Alabama, descreveu em 1866 a compra de 40 escravos no Brasil por US$ 12.500. Esse valor seria bem mais barato do que compras semelhantes nos Estados Unidos antes da proibição da escravidão.

À medida que os abolicionistas do Brasil avançavam em sua causa no final do século 19, alguns dos confederados buscaram preservar a escravidão mesmo enquanto a região ao seu redor despontava com cenário de revoltas de escravos.

Em 1888, apenas meses antes da abolição da escravidão no Brasil, os imigrantes confederados James H. Warne e John J. Klink lideraram uma multidão que realizou um dos mais notórios linchamentos daquele período caótico, matando Joaquim Firmino, um chefe de polícia abolicionista de uma cidade próxima de Santa Bárbara d'Oeste, diante de sua família.

"Muitos dos imigrantes confederados eram supremacistas brancos sem remorso", disse Maria Helena Machado, uma historiadora da escravidão da Universidade de São Paulo.

Outro historiador, Gerald Horne, da Universidade de Houston, comparou a emigração dos confederados para o Brasil a um êxodo de sulistas americanos depois da Guerra Civil para Fiji e outros locais no Pacífico, onde ajudaram a estabelecer um comércio de melanésios e polinésios escravizados.

"É claro que a relutância em aceitar a abolição não foi a única causa para essa migração", disse Horne. "Muitos dos emigrantes tinham motivo para acreditar que seriam processados por traição, enquanto muitos simplesmente enfrentavam um desagrável mal-estar ao contemplarem um tipo diferente de relacionamento com os africanos do que aquele que antes existia."

Gerações após a chegada dos primeiros confederados aqui, alguns estão tentando decifrar seu legado complexo. Por todo o Brasil, seus descendentes incluem Ellen Grace Northfleet, uma ex-ministra do Supremo Tribunal Federal do Brasil; Rita Lee Jones, uma cantora de rock e ativista de direitos dos animais; e Gregório Duvivier, um humorista que escreve uma mordaz coluna satírica no jornal "Folha de São Paulo".

Apesar dos descendentes estarem espalhados por todo o Brasil, a comemoração no Cemitério dos Americanos até mesmo atrai algumas poucas pessoas dos Estados Unidos.

"Sinto-me em casa aqui", disse Stanley Hudson, 60, um advogado de Dallas que soube da comemoração por meio da Filhos dos Veteranos Confederados, uma associação de descendentes dos soldados confederados. Vestindo um uniforme de capitão, ele acrescentou: "É preciso admirá-los por manterem a cultura ao longo de tantas gerações".

Perto do palco onde casais dançavam, mascates vendiam camisetas com o slogan "Rebel & Proud of It" (Rebelde e Orgulhoso Disso). Tudo à venda podia ser pago com os dólares confederados obtidos na entrada.

"É um evento alegre", disse Carlos Copriva, 52, um segurança que se descreveu como sendo de descendência húngara e italiana. Ele usava um boné confederado que comprou online e ele e sua mulher, Raquel Copriva, que é afro-brasileira, caminhavam pelo cemitério repleto de buganvílias.

Sorrindo para o marido, Raquel, 43, que trabalha como empregada, olhava para os túmulos ao redor deles. "Nós sabemos que houve escravidão tanto nos Estados Unidos quanto Brasil, mas olhe para nós agora, brancos e negros, juntos neste lugar", ela disse enquanto apontava para as lápides. "Talvez sejamos o futuro e eles são o passado."