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Americanos fazem "corrida ao ouro orgânico" em solo cubano

Trabalhadores que são também proprietários trabalham na terra em uma fazenda cooperativa orgânica próximo a Havana, em Cuba - Lisette Poole/The New York Times
Trabalhadores que são também proprietários trabalham na terra em uma fazenda cooperativa orgânica próximo a Havana, em Cuba Imagem: Lisette Poole/The New York Times

Kim Severson

Em Havana (Cuba)

27/06/2016 06h02

Ser uma autoridade de agricultura em Cuba atualmente é como viver em uma cidade turística que todos seus amigos querem visitar. Você raramente tem um momento para si mesmo.

Por meses, os gabinetes do governo de Havana e suas fazendas urbanas mais bonitas têm estado repletas de burocratas americanos, vendedores de sementes, executivos de empresas alimentícias e produtores rurais, que passam suas noites fazendo refeições preparadas com ingredientes frequentemente importados ou contrabandeados para restaurantes que a maioria dos cubanos não tem dinheiro para frequentar.

Eles buscam os prêmios que provavelmente virão caso os Estados Unidos suspendam suas restrições comerciais contra Cuba: nova oferta de açúcar, café e produtos tropicais, um novo mercado para as exportações americanas que pode render mais de US$ 1,2 bilhão por ano em vendas, segundo a Câmara de Comércio dos Estados Unidos.

Mas para alguns, a busca envolve menos dinheiro e mais o que alegam ser a alma da agricultura cubana e a forma como o povo come.

"Os cubanos não gostam da ideia de um Burger King em cada esquina ou da presença da Monsanto aqui", disse a deputada Chellie Pingree, democrata do Maine, uma produtora rural orgânica.

Em maio, Pingree liderou uma coalizão de líderes do setor orgânico, chefs e investidores em uma visita de cinco dias aqui.

A missão deles, em parte, era encorajar as autoridades cubanas a resistirem aos encantos dos interesses do grande setor agrícola e alimentício americano convencional e persuadir os cubanos a protegerem e ampliarem as práticas orgânicas de pequena escala, que já fazem parte de seu cotidiano.

Cuba é um raro oásis de agricultura orgânica sustentável. Por razões políticas, geográficas e filosóficas, o país foi forçado a abandonar grande parte de sua agricultura de grande escala, dependente de produtos químicos, e substituí-la por uma rede de fazendas menores e métodos mais naturais.

Pouco depois da revolução em 1959, Cuba começou a enviar açúcar, tabaco e pesquisa para a União Soviética, em troca de um fornecimento constante de bens que incluíam alimentos, equipamentos agrícolas e produtos químicos agrícolas. Mas 30 anos depois, após o colapso do bloco soviético, o fornecimento cessou.

Sem combustível e peças sobressalentes, os tratores deixaram de ser utilizados no campo. Plantações foram perdidas e o gado morreu. Estudos mostram que o cubano comum perdeu mais de 5 quilos durante aquele que o presidente Fidel Castro chamou de "período especial em época de paz".

4.mai.2016 - Plantações em velhas latas de cervejas na Finca Marta, uma fazenda orgânica nas proximidades de Havana, em Cuba - Lisette Poole/The New York Times - Lisette Poole/The New York Times
Plantações em velhas latas de cervejas na Finca Marta, uma fazenda orgânica nas proximidades de Havana
Imagem: Lisette Poole/The New York Times


Com o fracasso de muitas grandes fazendas de propriedade do governo, Castro instruiu a nação a cultivar alimentos sem produtos químicos. Bois substituíram os tratores. Cooperativas agrícolas menores e novos mercados surgiram.

Cuba ainda importa 60% a 80% de seus alimentos, segundo estimativas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, e pouco ou nada disso orgânico. Produtos químicos agrícolas são importados de outros países onde não há embargos comerciais.

O governo cubano é dono de cerca de 80% das terras que o país usa para produção de alimentos, porém mais da metade permanece inculta. Não está claro o quanto dos produtos cultivados em Cuba se qualificariam como orgânicos segundo os padrões americanos.

Mesmo assim, um movimento orgânico coeso está crescendo. Segundo suas próprias estimativas, Cuba conta com quase 400 mil fazendas urbanas, entre elas cerca de 10 mil orgânicas pequenas. O governo continua arrendando terras para produtores rurais independentes, apesar de exigir da maioria que cultive alimento para o Estado.

Para o grupo de defensores de produtos orgânicos que visitou o país em maio, o sonho é ajudar Cuba a permanecer fiel a um estilo sustentável de agricultura, que rejeita produtos químicos e modificação genética. Eles apontam para um incentivo: o interesse do mercado americano (e a disposição em pagar mais caro) por produtos orgânicos.

Apesar de apenas 5% de todos os alimentos vendidos nos Estados Unidos serem orgânicos, essas vendas cresceram no ano passado três vezes mais do que a do mercado alimentício em geral, segundo a Associação de Comércio Orgânico. Cuba oferece uma nova fonte para atender a demanda por açúcar, mel, frutas e outros ingredientes orgânicos.


8.mai.2016 - O chef Tom Colicchio, de Nova York, que está fazendo campanha para que autoridades cubanas invistam na cultura orgânica e resistam à grande agricultura, visita escola de culinária em Havana  - Lisette Poole/The New York Times - Lisette Poole/The New York Times
O chef Tom Colicchio, de Nova York, que está fazendo campanha para que autoridades cubanas invistam na cultura orgânica e resistam à grande agricultura, visita escola de culinária em Havana
Imagem: Lisette Poole/The New York Times

Mas Cuba também oferece 11 milhões de novos clientes potenciais para a agricultura convencional. Poucos dias após a partida do grupo de Pingree, a Coalizão Agrícola dos Estados Unidos para Cuba, que já está trabalhando no país, retornou.

Fundada em 2015 para promover a normalização das relações americanas com Cuba, o grupo conta com mais de 100 membros, incluindo empresas como Butterball e Cargill, associações de commodities como refinadores de milho e produtores de soja, assim como vários birôs agrícolas estaduais.

A delegação voltou para casa com um acordo com o Grupo Empresarial Agrícola cubano para restabelecimento de Cuba como um mercado para produtos agrícolas americanos. Em um incentivo adicional, o governador do Missouri, Jay Nixon, anunciou em 30 de maio que Cuba aceitou uma doação de 30 toneladas de arroz de grão longo cultivado em seu Estado. O último envio oficial de arroz americano para Cuba ocorreu em 2008.

Apesar de muitos no setor orgânico verem a coalizão como uma ameaça à sua causa, seus líderes dizem que compartilham a mesma meta: ajudar Cuba a alimentar a si mesma e melhorar suas práticas agrícolas.

"Não há tensão, porque no final, trata-se de como o produtor rural cubano aumentará sua produtividade e fará suas próprias escolhas", disse Devry Boughner Vorwerk, uma ex-executiva da Cargill que agora é diretora do grupo. "O ponto chave aqui é que há espaço suficiente para todos."

Doug Schroeder, um produtor de soja de Illinois, participou da visita da delegação. Seu Estado envia cerca de US$ 20 milhões em milho e soja para Cuba por ano, sob as regras complexas que regem o comércio entre os dois países. Se os Estados Unidos encerrarem o embargo financeiro a Cuba, esse número poderia saltar para US$ 220 milhões.

"Multiplique isso por todo o país e todas as vendas agrícolas e verá que é um grande negócio", ele disse.

Aqueles que apoiam a agricultura orgânica dizem que há algo maior em jogo do que apenas comércio. A adoção dos métodos agrícolas baseados em produtos químicos utilizados pelas grandes empresas do agronegócio que estão visitando Cuba pode parecer uma proposta lucrativa, mas ameaçaria o potencial orgânico de milhares de hectares de terras incultas em Cuba.

"Esse é um sistema do passado", disse Gary Hirshberg, presidente da empresa de iogurte Stonyfield Farm e um líder no esforço de rotular os alimentos com ingredientes modificados geneticamente, para as autoridades cubanas na visita em maio. "Nós somos a indústria do futuro."

5.mai.2016 - Mercado "boutique" oferecendo produtos mais caros e de maior qualidade, em Havana (Cuba) - Lisette Poole/The New York Times - Lisette Poole/The New York Times
Mercado "boutique" oferecendo produtos mais caros e de maior qualidade, em Havana
Imagem: Lisette Poole/The New York Times


Mesmo assim, esse futuro, seja ele orgânico ou não, provavelmente ainda está distante. Os cubanos entrevistados durante a viagem organizada por Pingree disseram que seu país não está preparado para lidar com a enxurrada de novo comércio.

O sistema agrícola cubano permanece tão antiquado que até mesmo sementes e carrinhos de mão estão em falta. As regras para realização de negócios, mesmo para os produtores rurais e pessoas que tentam iniciar mercados atacadistas, parecem mudar a cada semana.

"Todos estão adequadamente sóbrios a respeito das realidades", disse Laura Batcha, a diretora executiva da Associação de Comércio Orgânico.

O Departamento de Agricultura ainda não reservou espaço de escritório na nova embaixada americana em Havana. E apesar do empenho do presidente Obama, os esforços para suspensão das sanções comerciais estão avançando lentamente no Congresso e atolados devido às campanhas eleitorais.

Na segunda-feira, a Nespresso anunciou que seria a primeira empresa a vender café cubano nos Estados Unidos desde a revolução. Por meio de um acordo fechado com ajuda da TechnoServe, uma organização de desenvolvimento sem fins lucrativos, as cápsulas de café cubano que a Nespresso está chamando de Cafecito de Cuba estarão à venda por tempo limitado no quarto trimestre.

As pessoas que comercializam produtos orgânicos também dizem que provavelmente começarão de forma pequena. O café é uma possibilidade, assim como carvão feito de marabú, uma árvore espinhosa invasora que atrapalha os produtores rurais que tentam limpar as terras. O carvão vegetal de alta qualidade tem grande demanda na Europa.

E há o açúcar, especialmente o açúcar orgânico, que tem alta procura pelas refinarias de açúcar americanas. E se o açúcar orgânico cubano se tornasse um ingrediente indispensável para os coquetéis artesanais, perguntou Pingree durante uma caminhada por um bairro de Havana. Isso poderia mudar a opinião pública o suficiente para influenciar o Congresso.

"Pode soar frívolo, mas algumas portas se abrem em certos momentos", ela disse. "A esta altura, estamos procurando por pequenos caminhos para que isto avance. É difícil saber quais serão."