Subserviência do Brasil à Fifa é humilhante
Todo menino costuma bater bola sob o pseudônimo de um craque. Fantasia ser Pelé, Zico, Garrincha, mesmo na condição de perna-de-pau – meu caso, admito. Logo vi que ser jogador de futebol não daria pé, nem bola, nem gol: falta-me intimidade com a pelota.
Apaixonado por futebol desde meu primeiro fio de cabelo, mas frustrado como boleiro, não tive alternativa que não a de me tornar um humilde pesquisador da história do futebol brasileiro. E, mais bem sucedido, dediquei minhas energias a outra paixão precoce: lutar para que os direitos dos excluídos fossem garantidos.
Sei que o Brasil participou da primeira Copa do Mundo de futebol em 1930. Ainda não era nascido, mas quase posso sentir a dor da derrota para o mesmo Uruguai no mundial de 1950, naquele Maracanã de mais de 200 mil pessoas – aquele jogo espremeu nosso “complexo de vira-latas” entre a trave e o goleiro Moacir Barbosa, diria nosso anjo maldito Nelson Rodrigues. Mais crescido, vi o meio de campo inigualável – com Zico, Sócrates, Falcão, Toninho Cerezo – batido pelo devastadoramente frio escrete da Itália e seu futebol feio.
Gramados ganhavam, vez ou outra, tom verde-oliva. O militarismo se locupletava do fascínio exercido pelo futebol na “pátria de chuteiras”, encanto usado contra o próprio povo, em quarteladas mundo afora – a ditadura argentina usou tal paixão, nos idos de 1960 e 1970, para sufocar a voz das ruas. Ousarei comparar esse tipo de ação com o embrião de ofensiva petista, no melhor estilo “ame-o ou deixe-o”, contra as manifestações anti-Copa? Ousarei.
Os donos do poder devem abortar o ataque ao movimento “Não vai ter Copa”, ou terão um replay mais grave daquele junho de 2013. Afinal, é muito provável que a Copa aconteça, mas certamente não será a festa que tem sido pintada pelas autoridades, feita para ocultar do mundo as nossas mazelas sociais.
O povo brasileiro torcerá pela seleção da forma mais apaixonada possível, como sempre fez. Mas não permitirá que sua voz seja abafada como em épocas passadas. O povo quer a vitória da seleção, mas prefere saúde de qualidade, educação para todos, transporte digno e eficiente. O povo quer ser visto como prioridade, como o foram empresários e senhores da Fifa.
O Brasil, meus caros, está longe do tal padrão Fifa. É humilhante nossa subserviência à entidade máxima do futebol, que age como se universo paralelo fosse. Pois vejamos: está estimado em 80% o total de gastos públicos com obras para a Copa, anunciada sob a mentira do zelo com o dinheiro do contribuinte. Além de superfaturar estádios e deixar obras inacabadas, teremos como herança maldita – e não o tão alardeado “legado da Copa” – milhares de brasileiros removidos de casas, comércios e instituições.
Tanto os desalojados quanto os operários mortos são vítimas da pressa, da incompetência e da falta de vigilância governamentais. Deixaremos que Mr. Blatter e seu séquito endinheirado contaminem nossas searas por um mês, daqui saindo com bilhões de dólares a mais e deixando um rastro de vergonha como legado?
Vamos continuar no passado? Então promovamos logo uma Copa nos moldes do famigerado “Mundialito”, organizado em 1980 para favorecer a ditadura então aboletada no Uruguai. O Uruguai derrotou o Brasil em jogo com arbitragem para lá de alinhada à casamata, em nada celeste ou olímpica memória. Teria a ditadura uruguaia atingido seus objetivos? Não. O povo torceu pela seleção e, em seguida, nas urnas e nas ruas, derrotou o regime de exceção.
Findo este libelo disfarçado de artigo, lembro uma conversa com meu querido amigo e notável escritor Cid Benjamin que, preso e torturado nos tempos sombrios do militarismo, torceu pela nossa seleção mesmo sob a engenhosa perversidade do arbítrio. Estarei, como sempre fiz na vida, torcendo pela nossa seleção. E, ao mesmo tempo, apoiando e participando dos protestos por melhores condições de vida em nosso país. Ambos são direitos dos brasileiros. E ninguém nos privará de exercê-los.
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