Há um deficit enorme de qualidade dos serviços prestados no país
Ao contrário do que preconiza o senso comum, nem sempre quem vende muito oferece um bom produto ou serviço.
Vários dos serviços objeto de queixas dos brasileiros são prestados por empresas privadas, mas são públicos e concedidos, ou ainda de interesse público, como a educação privada. Além disso, há os serviços chamados “suplementares”, como os planos de saúde que, por este nome, deveriam adicionar, somar (sim, é isso mesmo!) ao que é oferecido pelo SUS. E há os serviços privados simplesmente.
Na maior parte dos casos, o papel do Estado é essencial para a manutenção da qualidade, seja porque ele presta serviço básico ou semelhante, seja porque ele pode e deve exigir o cumprimento de parâmetros e metas na prestação dos entes privados. Mas, não raro, o Estado não consegue fiscalizar de maneira eficaz a prestação dos mesmos e, tampouco, ameaça retomar concessões quando há falha reiterada e grave.
O Estado, aqui, não é só o governo federal, mas um caso exemplar é o das agências reguladoras e das autarquias que têm sob sua tutela atividades como serviços financeiros, telecomunicações e assistência à saúde, para ficar apenas em três exemplos.
Os órgãos federais encarregados de zelar pela boa prestação desses serviços estão bastante suscetíveis a influências do próprio setor regulado, muitas vezes até com a presença de pessoas ocupando cargos de direção e que estiveram recentemente nas empresas reguladas.
Ou ainda, as agências pautam sua atividade regulatória e fiscalizadora por regras específicas do setor, esquecendo-se dos direitos do consumidor. Elas obedecem à dinâmica econômica do próprio setor regulado e não visam, necessariamente, à melhoria da qualidade dos serviços ao consumidor e ao cidadão.
Por exemplo: o Banco Central esquiva-se de punir e corrigir a má prática recorrente de bancos em relação ao consumidor, alegando que seu papel é apenas “zelar pela higidez do sistema financeiro”. Caberia perguntar por que razão ele mantém um índice de reclamações atualizado mensalmente em seu site. Se não é para agir, para que serve?
Os exemplos poderiam se estender a Estados e municípios: lixo e transporte metropolitano, saneamento básico, segurança e educação.
Mas não é só o governo que falha. Uma sociedade madura tem que deixar de lado essa ladainha de culpar só o outro e esquecer do que pode fazer para melhorar. Se a lei for cumprida, por exemplo, já será uma grande coisa. Temos leis excelentes e outras nem tanto, mas nosso deficit não é legal ou normativo.
Inúmeras pesquisas do Idec fotografam práticas ruins de prestadores de serviços. Fazemos nossas pesquisas e testes sempre na perspectiva de um consumidor comum, isto é, sondamos aspectos básicos na oferta e prestação de serviços.
As empresas argumentam que as irregularidades encontradas decorrem de acidentes ou equívocos pontuais, mas sempre encontramos os mesmos problemas a cada vez que testamos os serviços, e isso ao longo de 27 anos de atividades do Idec.
Bancos não entregam contratos e nem informam taxas e outros valores quando alguém contrata um empréstimo, impõem a venda casada de seguros e outros serviços, cobram tarifas diferentes e por aí afora.
O mesmo pode ser dito das empresas de serviços de telecomunicações. Os planos ilimitados nunca são exatamente isso, os valores atraentes são sempre “promocionais” e duplicam em pouco tempo, as taxas por serviços adicionais são surpreendentemente altas e os pacotes são alterados segundo o desejo e a conveniência das empresas – isso é bastante comum nos serviços de TV por assinatura. Para não falar na baixa qualidade propriamente dos serviços.
No setor de saúde suplementar – os planos de saúde – o padrão de qualidade é igualmente sofrível. Quando não se pode pagar um plano de elevadíssimo padrão, o que verificamos em 90% dos casos é a negativa de cobertura diante da necessidade de um tratamento, internação ou cirurgia, a exclusão de um profissional, hospital ou laboratório da lista dos credenciados e, finalmente, os aumentos muitas vezes superiores à inflação.
Isso está estampado não apenas em nossas pesquisas e testes, mas nos milhões de queixas de consumidores nos Procons do país, nas redes sociais e páginas da internet, nos SACs das empresas, nas ouvidorias e nas agências reguladoras. São milhões de conflitos de consumo, mas ainda subdimensionados.
Temos, portanto, um deficit enorme de qualidade que está ligado a várias razões, mas certamente não é de incapacidade técnica dos prestadores e tampouco de falta de normas e leis. Nossas leis, ao menos as mais importantes relativas a serviços, como o Código de Defesa do Consumidor, são excelentes.
Esse deficit de qualidade está intimamente ligado a uma escolha pela maximização dos lucros a qualquer preço, por expandir mais e conservar menos, por informar pouco e faturar muito, por investir pesado em vendas e quase nada em assistência e suporte.
O Código de Defesa do Consumidor completa, no dia 11 de setembro, 24 anos de sua promulgação, e não é exagero dizer que ele prevê em poucos artigos quase todas as situações aqui referidas. É uma das mais avançadas leis de proteção ao consumidor no mundo todo e um ótimo guia de boas práticas.
O desafio que vivemos neste momento de expansão de serviços é, portanto, de passarmos das melhores leis para as melhores práticas. Essa não é uma tarefa só dos governos, mas também das empresas. Isso não precisa esperar por mais e novas leis.
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