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Artistas mirins devem ter direito de explorar seus potenciais

Especial para o UOL

22/07/2015 06h00

Ao ouvir a expressão “trabalho infantil” você provavelmente pensa em crianças realizando trabalho escravo em minas de carvão ou em canaviais. Talvez pense em exploração sexual. Qual é a chance de alguém lembrar de um ator ou modelo mirim?

É claro que as devidas proporções devem ser consideradas e, evidentemente, não seria prudente comparar um estúdio com uma mina de carvão. Porém o fato de existirem situações de maior insalubridade e risco não deve impedir a reflexão e a problematização dos potenciais lesivos de outras atividades. No caso dos atores mirins, a glamourização é outro fator que colabora para que seu caráter laboral seja desconsiderado.

Eu comecei a pedir para “fazer novela” com cerca de 4 anos. Àquela altura o que sabia eu sobre o que era, de fato, “fazer novela”? Se na maior parte das vezes nem mesmo o adulto tem uma noção clara de como se dá o processo de gravação, imagine uma criança, que, assim como a sociedade, tende a enxergar o trabalho artístico como uma atividade lúdica, um “brincar de faz-de-conta”.

Neste ponto é fundamental que uma diferenciação básica entre a brincadeira e o trabalho seja levantada: o trabalho não é espontâneo. É um compromisso.

Uma equipe inteira depende de a criança estar presente na hora certa (e muitas vezes isso inclui trabalhar mesmo estando doente ou indisposta), ter decorado corretamente o texto e as marcas, estar concentrada, falar apenas as coisas certas e nas horas certas. É um mercado que envolve pressa, cifras altíssimas e consequentemente muita cobrança.

O que atribui à brincadeira seu incalculável valor terapêutico para o desenvolvimento infantil é justamente o fato de surgir espontaneamente de conteúdos inconscientes. Ocorre naturalmente.

No trabalho esse caráter se perde. Por haver esse elemento “voluntário” é comum as crianças serem tratadas com um tom de “está aqui porque quer, você escolheu, então agora se comporte como um adulto” e portanto é importante lembrar que a escolha da criança é feita sem ter consciência de tudo que está envolvido.

Agora, sem dúvida, o ponto mais importante acerca deste tema é: nada é necessariamente mau e prejudicial. A experiência é subjetiva. O que pode, por um lado, ser traumático, pode por outro ser extremamente potencializador.

Se para uma criança a pressão e a grande carga de tarefas a cumprir podem virar um desafio estimulante, para outra podem ser motivo de estresse e gerar um entendimento de que o mundo sempre vai exigir mais do que ela é capaz de dar.

A criança que faz vários testes sem sucesso pode adquirir experiência para lidar com frustrações de forma positiva ou pode entender que é inadequada, que “não serve”. Enquanto uma criança pode lidar bem com a interpretação de personagens em um momento em que ela mesma ainda não tem um forte senso de identidade, uma outra pode se misturar com esses personagens e criar uma identidade frágil e confusa.

Se ver os pais cada vez mais felizes e orgulhosos pelas suas realizações profissionais pode ser uma fonte de sentimentos positivos sobre si mesmo e um elemento poderoso para a construção de uma autoestima fortalecida, pode também ser fonte de angústia crescente pelo medo de falhar em algum momento.

Esse medo de decepcionar os pais pode, inclusive, acabar fazendo com que a criança se convença de que é aquilo que ela quer, mesmo quando não é. Ora, depois de ver os pais se dedicando tanto, investindo tanto tempo e dinheiro, a criança pode criar a fantasia, consciente ou não, de que “deve” uma retribuição por isso tudo e que se disser “não quero mais fazer isso, mudei de ideia” perderá a admiração e o amor dos pais.

Esses são alguns exemplos simples para passar a ideia do quanto uma mesma vivência pode ter impactos positivos ou negativos em cada criança. É fundamental compreender que seus recursos internos e a estrutura de apoio ao redor dela são determinantes neste processo.

As ferramentas psíquicas que ela tem para elaborar e integrar de forma positiva as experiências vividas são de suma importância e isso explica por que é tão importante que esses pequenos artistas, bem como suas famílias, tenham orientação e acompanhamento psicológico.

Cabe aos pais buscar isso para seus filhos. Cabe à sociedade cobrar que estes pais e estas empresas ou agências contratantes se certifiquem de que as crianças estão tendo o apoio de que necessitam. Cabe a nós, terapeutas, estar preparados quando essas crianças chegam até nós.

Com alguma frequência, acontecem casos como os recentes, em que atores e apresentadores mirins tiveram seus alvarás de trabalho negados e foram afastados de suas atividades. Creio que a criança deve ter o direito de explorar seus potenciais, de realizar algo que lhe apraz e que pode torná-la um indivíduo melhor. Trabalhar e conquistar seu próprio dinheiro pode, além de pragmaticamente oferecer-lhe mais qualidade de vida em muitos casos, fortalecer seu senso de produtividade e capacidade de realização.

Precisamos tornar nossas crianças o melhor que elas podem ser. Precisamos ajudá-las a descobrir o melhor que há em si, sua estatura psicológica. E não há “receita para bolo” quando estamos falando de experiências subjetivas.

Cada criança precisa ser olhada e trabalhada dentro da sua individualidade e do seu universo para que possa crescer e desempenhar de forma mais equilibrada, forte e autêntica o seu melhor papel: ser ela mesma.

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