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Despoluição do rio Tietê é reivindicação elitista

Especial para o UOL

23/09/2015 06h00

Desde já, explico adequadamente esse título francamente provocativo. Por óbvio que todos gostariam e mereceriam rios urbanos inteiramente despoluídos, capazes de honrar a história e prover as cidades de elementos ambientais, culturais e de lazer, quando não de saudáveis recursos hídricos para abastecimento e de infraestrutura natural para o transporte hidroviário.

Porém, esse tipo de reivindicação, quando expresso isoladamente, fora do contexto mais geral de programas de saneamento básico, imaginando para tanto que a desejada despoluição venha a ser fruto de ações junto ao próprio curso d’água –como o conhecido Projeto Flotação que pretendia com intervenções tecnológicas no próprio canal despoluir o que nos resta do Rio Pinheiros–, implica inexoravelmente em dirigir grande quantidade de recursos públicos escassíssimos em operações de limitado alcance social.

E essas operações em nada mudariam o baixíssimo patamar de saneamento público de nossas cidades. Paradoxalmente, é essa a deficiência que está na raiz da poluição dos rios urbanos.

Fixando a afirmação: a poluição dos rios urbanos é causada pelas águas, fluidos e detritos vários originados pelas cidades que os envolvem. Não há poluição hídrica gerada nos próprios rios. A qualidade das águas dos rios urbanos é conseqüência e retrato direto e exato da qualidade dos serviços urbanos de saneamento: distribuição de água potável, recolhimento de efluentes por redes de esgotos, tratamento dos esgotos recolhidos e realimentação da rede hidrográfica.

Vejamos alguns números (ordens de grandeza) da região metropolitana de São Paulo (RMSP), a qual geograficamente coincide em sua maior parte com a Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que tem o próprio Tietê como rio principal e o Pinheiros e o Tamanduateí, como seus principais afluentes: volume de esgoto gerado anualmente: 1.350.000.000 m³; volume de esgoto coletado: 900.000.000 m³/ano; volume de esgoto tratado: 497.000.000 m³/ano.

Do que se depreende que, por dados oficiais, são recolhidos apenas 67% do esgoto total gerado, e são tratados apenas cerca de 37% desse mesmo volume total. Ou seja, bem mais da metade do esgoto gerado na RMSP é lançado em termos práticos diretamente na rede hidrográfica urbana. Isso sem considerar as inúmeras e qualitativamente expressivas irregularidades de esgotos autogerados –não oficialmente computados e irregularmente lançados in natura que sabidamente existem em abundância em toda a metrópole–, o que evidentemente torna a situação ainda mais grave.

Pois bem, frente a esse terrível quadro, e sabedores que suas vítimas maiores habitam áreas faveladas e as zonas periféricas pobres de nossas cidades, fica-nos absolutamente claro que os ganhos que teremos na qualidade das águas de nossos rios serão fruto direto dos ganhos que tivermos nas políticas públicas de saneamento básico.

Isto é, nossos rios serão despoluídos na medida da extensão das boas práticas de saneamento para toda a cidade, ou, em outras palavras, nos ganhos de cidadania em saneamento básico. De quebra, teremos rios limpos e cheios de vida. Ou seja, a despoluição dos rios acontecerá como decorrência natural, em um movimento de fora para dentro, se assim pudermos dizer.

Nesse cenário, onde está caracterizado uma clara injustiça social das populações mais pobres, podemos afirmar, sim, que a reivindicação de termos rios limpos resultantes de caríssimas operações tecnológicas neles próprios aplicadas, enquanto a população pobre obriga-se a viver arriscadamente em ambientes contaminados por esgotos a céu aberto, contém sim um indisfarçável caráter elitista e excludente.

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