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2015: o ano do esgarçamento do presidencialismo e do Legislativo

Especial para o UOL

30/12/2015 06h00

Na retrospectiva que fiz para o UOL ao final de 2014, eu afirmei que a vitória de Dilma e a quarta derrota seguida da oposição sinalizavam na direção de uma “americanização” do fazer oposição no Brasil. Eu entendia pelo termo uma oposição permanente ao governo no Congresso, que não estaria disposta a ajudá-lo em qualquer agenda positiva. Confesso que subestimei o fenômeno.

Dois elementos marcaram a política em 2015: a crise mais grave do presidencialismo desde 1992 e uma completa deslegitimação do Congresso. Dilma iniciou o ano sem entender os desafios colocados para o seu governo. Ela foi eleita com uma maioria frágil e o PT foi derrotado nas eleições para a presidência da Câmara. O partido, que chegou a eleger, em 2010, 88 deputados, fez uma bancada de 70 e sofreu uma fortíssima derrota em São Paulo, não elegendo nenhum entre os 20 deputados federais mais votados no Estado.

Esse desempenho sugeriria uma estratégia, no mínimo, cautelosa com relação ao Congresso, mas Dilma perdeu a sua base em 90 dias. O primeiro elemento no derretimento do apoio foram as mudanças na economia, e aqui é possível apontar que os problemas de 2015 foram consequências de uma maneira incorreta de vencer a eleição, não sinalizando que o crescimento a partir de uma política anticíclica havia se esgotado.

Dilma poderia ter aberto a si mesma a possibilidade de mudar de curso. Mas ela também não se importou em fazê-lo depois da campanha, perdendo apoio –a popularidade caiu de 42%, em dezembro de 2014, para 13% em março, segundo o Datafolha.

E no dia 1º de fevereiro ocorreu o fato principal que marcou o ano político: a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. Todos os presidentes do Brasil que enfrentaram instabilidades políticas tiveram problemas no Congresso. Vargas, Collor e FHC enfrentaram pedidos de impeachment, e Jango teve que aceitar o Parlamentarismo. Mas é possível que o conflito mais forte entre Congresso e Executivo na história recente tenha se dado neste ano.

A partir da posse de Cunha, somou-se à queda da popularidade de Dilma uma série de ações de clara sabotagem do seu governo, em especial do seu plano de estabilização econômico. Ao mesmo tempo, o deputado brincou com a ideia de impeachment durante todo o ano, e o colocou como ferramenta a ser barganhada pela presidente.

Manifestações e conservadorismo

Março e abril modificaram padrões históricos relativamente bem estabelecidos pela democracia brasileira. Rompe-se uma "interdição" das manifestações de fundo conservador e a hegemonia de esquerda sobre os movimentos. A agenda da corrupção alcança as ruas com um corte seletivo, que culpa apenas alguns e ignora os escândalos dos amigos. Ocorrem também manifestações "progressistas", que não foram da mesma magnitude que as do campo conservador. Começou ali o isolamento social da presidente, que persiste até hoje.

Associado às mobilizações, desponta no Congresso uma pauta extremamente conservadora, articulada por Cunha, propondo diversas mudanças relativas a direitos, como a redução da maioridade penal, a penalização do aborto e o estatuto da família. Ao mesmo tempo, propõe uma agenda de reforma política sustentada no financiamento privado de campanha e no chamado "distritão".

Ao final do primeiro semestre já era possível enxergar uma mudança da correlação de forças políticas estabelecida desde 2003. A esquerda perdeu a hegemonia das ruas, o governo perdeu o controle do Congresso, e a presidente perdeu completamente o seu apoio.

Já o segundo semestre começou com forte judicialização de diversas pautas. O governo foi derrotado em duas disputas: no TSE, sobre a prestação de contas das eleições de 2014, e no TCU, que não é, estrito senso, um órgão judicial, mas vota através de critérios jurídico-legais as prestações de contas do governo. Ambas as derrotas cimentaram um caminho legal para o processo de impeachment. A batalha política no Congresso e nas ruas tornou-se uma batalha jurídica.

Em setembro, Dilma finalmente reorganizou o seu governo com uma reforma ministerial que abrangeu três pontos principais. Primeiro, a nomeação de Jaques Wagner para a Casa Civil, reforçando a articulação política com o novo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Ricardo Berzoini. Em segundo lugar, o PMDB foi alçado a mais ministérios e de maior relevância, entre eles o da Saúde. Também ocorreram algumas extinções de pastas e agregação de áreas.

O balanço da reforma foi positivo e a base do governo foi finalmente reforçada, permitindo concluir importantes etapas do ajuste fiscal.

No entanto, a reforma deixou em aberto a relação com o PMDB. O ato de reforçar o partido no governo foi também um ato de escolha de alguns dos seus setores, que não poderiam passar por Cunha, pelas razões já esboçadas acima. Acabou não passando pelo vice-presidente Michel Temer também, devido a escolha dele de se afastar da articulação política. Assim, acabou se concentrado em nichos de poder, em especial naquele ligado ao ex-governador do Rio Sérgio Cabral e a Renan Calheiros. De uma forma pouco esperada, a tentativa do governo de estabilizar a sua base foi relativamente exitosa, mas teve como custo adicional uma radicalização de Cunha e do próprio Temer.

Revanchismo e agenda de 2016

O mês de dezembro foi marcado pelo previsível desfecho da crise entre Dilma e Cunha, que se deu em torno de um duplo enfrentamento: de um lado, o PT, no Conselho de Ética, resolveu se posicionar contra Cunha. De outro, o deputado aceitou o processo de impedimento de Dilma, apesar das fortes dúvidas políticas e legais em relação ao tema.

As chamadas pedaladas, a única alegação legal importante que pesa contra a presidente, versam sobre um processo de julgamento de contas do ano anterior que não seguiu alguns princípios básicos do estado de direito, como o da não retroatividade das ações legais. O TCU não notificou Dilma sobre o problema e mudou de posição com relação a como entender as manobras, que também ocorreram em governos anteriores.

A aceitação do pedido de impeachment implicou em uma aceleração da conjuntura própria de crises institucionais. Se tomarmos uma lista dos principais fatos das últimas semanas em Brasília, a lista é impressionante: operação da PF contra Cunha, parecer do ministro Fachin praticamente chancelando uma "chicana" procedimental proposta por Cunha, pedido de afastamento do Cunha entregue pela Procuradoria-Geral da República ao STF, condenação de Eduardo Azeredo a 20 anos de prisão pelo mensalão tucano e, finalmente, revisão profunda do argumento de Fachin, que anulou a comissão do impeachment e levou a decisão final o processo para o Senado. Tudo isso em dois dias.

Vale a pena algumas reflexões sobre o STF. Ele mostrou-se forte como guardião dos procedimentos e o fez com uma maioria que não está ligada a posições políticas fortes. A corte construiu um centro político, algo que faltou no Congresso durante 2015. Esse centro deve atuar até o final do processo de impeachment e já mostrou que não vai transigir com relação a procedimentos. Dada a gravidade do processo, essa é uma boa notícia.

É impossível neste momento traçar cenários consistentes para 2016. A presidente parece ter uma última chance se ela conseguir recuperar a iniciativa política. Para isso, ela precisa mostrar ao país não apenas que ela tem 171 votos na Câmara, mas que ela tem uma maioria sólida, que ela recuperou a capacidade de governar e, acima de tudo, que ela é capaz de oferecer um horizonte, principalmente econômico, para o país.

É difícil dizer se a presidente terá essa condição, mas é possível afirmar que ela tem mostrado maior capacidade política desde a reforma ministerial de setembro. O último trimestre do seu governo foi melhor do que os nove meses anteriores, que foram absolutamente desastrosos.

Já a oposição, em especial o PSDB, terá que mostrar que consegue se separar do golpismo de Cunha e convencer a opinião pública que tem motivos para propor o impeachment. Até agora foi Cunha quem deu a tônica da oposição ao governo, seguido por uma oposição dividida na maior parte das vezes. A capacidade da oposição de mostrar que ela não está pautada pelo revanchismo e que ela tem uma agenda para o país será decisiva em 2016, já que a chance de afastamento de Cunha pelo STF é bastante alta. São esses dois movimentos que definirão os próximos passos da crise e a possibilidade da sua estabilização.

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