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Armar mulheres e castrar agressores não vai acabar com o estupro

Especial para o UOL

01/06/2016 08h02

Nos últimos dias, me debrucei sobre centenas de comentários indignados nas redes sociais a respeito do estupro e resolvi investigar as principais sugestões dos internautas, como o armamento de mulheres, a castração química de estupradores e o retorno das aulas de Educação Cívica e Moral nas escolas.

Armar mulheres, em tese, seria possível no Brasil. Aqui, o porte de armas é permitido perante autorização e registro de arma na Polícia Federal, para cidadãos com mais de 25 anos, comprovação de habilidade técnica e psicológica e que alegue ameaça à sua integridade física –no caso, o risco de estupro pode ser um argumento válido. Se uma mulher matar um potencial agressor para se livrar do estupro, o assassinato será considerado legítima defesa.

Mas, após consultar uma série de especialistas brasileiros e dados sobre o estupro por aqui, estou convencida de que isso não é nem eficiente nem desejável. Pra começar, porque o contexto brasileiro tem complicadores psicológicos que dificultam a autodefesa: 70% dos estupros por aqui são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. “Acho mais provável que vítimas de estupro usem essas armas para cometer suicídio do que se defender de um estuprador com quem têm laços afetivos”, afirma a antropóloga Adriana Dias Higa, doutoranda da Unicamp e coordenadora do Comitê de Deficiência da Associação Brasileira de Antropologia.

O advogado e professor da Universidade Mackenzie Edson Knippel, que atendeu mulheres vítimas de violência no Escritório Modelo da PUC, também é cético quanto ao armamento feminino. “Muitas nem teriam coragem de puxar o gatilho. Se a vítima nasce num ambiente violento, com abuso e agressão, assimila esse comportamento como natural. Pode ser até mesmo que sequer compreenda que é vítima”, argumenta.

Nos Estados Unidos mesmo, em que o direito ao porte de arma é protegido pela Constituição, ocorre um estupro a cada dois minutos, segundo o RAINN, maior instituto de estudo e prevenção de estupro do país. De acordo com o mesmo órgão, 68% dos casos não são reportados. O número total de agressões sexuais cresceu de 207 mil em 2005 para 284 mil em 2014 (levantamento mais recente) –ou seja, as armas não estão impulsionando queda nas ocorrências.

Apesar do uso de armas de fogo ser bem menos popular por aqui, o 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que ocorrem menos estupros: 1 a cada 11 minutos, com 70% não sendo reportados (uma taxa similar à americana). A analogia continua válida quando observamos a diferença populacional, já que se trata de cinco vezes mais estupros nos EUA, sendo que a população não chega ao dobro da brasileira. E vale lembrar que, por lá, 56% dos crimes sexuais são cometidos por estranhos, o que torna bem mais fácil reagir com arma.

O alto índice de silêncio das vítimas, em ambos os países, tem sido interpretado por psicólogos e juristas, por muitos anos, como um indício de que o gargalo não está na autodefesa, mas na capacidade de se reconhecer enquanto vítima e fazer a denúncia. Como não são denunciados, estupradores se valem do clima de impunidade. Esse clima não viria somente de falha no sistema judicial, mas também da cultura que estimula o silêncio e culpa as vítimas pela violência sofrida.

Existe um discurso socialmente construído e incutido nas mulheres desde muito crianças de que se elas foram vítimas de agressão sexual é porque, de alguma forma, “estavam pedindo” –seja por serem sensuais demais, usarem roupas curtas ou até andarem sozinhas em locais inapropriados para “moças de família”. Esse mesmo discurso tende a justificar o estuprador, dizendo que ele, como é “macho”, não pôde controlar seus “instintos naturais”. É a isso que chamamos de cultura do estupro. E é por isso que tão mais homens do que mulheres cometem estupros em nosso país.

Lelah Monteiro, outra das profissionais com quem conversei, é duplamente especialista em como opera o cérebro das pessoas durante uma situação de estupro. Além de sexóloga (trabalha há 24 anos com o acompanhamento de mulheres que sofreram violência sexual), ela foi vítima de estupro três vezes. “Uma coisa é você fazer uma aula de defesa pessoal, em que você está concentrada naquilo. Outra é o momento do ataque. O efeito surpresa altera seu estado mental para usar uma arma”, explica.

É preciso lembrar, ainda, que 70% das vítimas de estupro no Brasil, por serem menores de idade, não poderiam –nem deveriam– ter porte de arma. O dado é do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).

Será que a moralização é moral?

Já os defensores da volta das aulas de Educação Moral e Cívica ou de Religião nas escolas defendem que a moralização do comportamento sexual dos indivíduos, com mulheres se vestindo de maneira mais casta e homens e mulheres se “guardando” para o casamento, resolveria o problema. Para descobrir se isso seria eficiente, a antropóloga Adriana Dias conduziu uma investigação pessoal. Debruçou-se sobre o caso dos 33 e, rapidamente, descobriu o perfil de 14 deles nas redes sociais.

“Adivinhe: todos os que encontrei eram evangélicos de diversas denominações”, revela. Segundo a especialista, evangélicos fundamentalistas do Rio de Janeiro e da política brasileira têm se esforçado historicamente para encobrir casos do tipo com o objetivo de espalhar o discurso de que “mulheres direitas não são estupradas”. Veja bem, falamos aqui de fundamentalistas, e não de todos –há evangélicos maravilhosos e inteligentes que são totalmente contra esse absurdo.

“Os evangélicos radicais têm todo o interesse em desconstruir a imagem da vítima (alegando que ela é imoral e “devassa”) porque isso, teoricamente, fortaleceria o argumento de que estudo religioso é necessário nas escolas e provaria que eles sabem resolver problemas melhor que o pessoal dos Direitos Humanos”, explica Adriana. “No entanto, se esse tipo de moralização fosse eficiente, o que explicaria que todos os homens que encontrei envolvidos são evangélicos?”

A antropóloga chama a atenção para o fato de que os mesmos evangélicos que defendem o endurecimento da lei do estupro no Congresso, como Eduardo Cunha, Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro, também são os primeiros a lutar para que a vítima seja obrigada a ter o filho do estuprador.

Castração química

Outro na lista dos mais citados para resolver o estupro no Brasil é a castração química. Ela consiste em uma forma temporária de castração com uso de medicamentos hormonais que reduzem a libido. Não ocorre a remoção dos testículos e a pessoa continua fértil, mas sem conseguir ter uma ereção. No Brasil, essa prática só é permitida com autorização do agressor.

Segundo estudos desenvolvidos na Universidade de Brasília (UnB), mesmo em casos de transtornos mentais, como a pedofilia, 90% dos agressores respondem bem a tratamento psicossocial e apenas 10% respondem apenas com auxílio de medicamentos hormonais de controle da testosterona. Mesmo nestes casos é recomendada a terapia.

A medida não é completamente eficaz, e um estudo conduzido na Alemanha nos anos 1960 mostrou que 18% dos agressores continuam com performance sexual normal, apesar dos hormônios. Defender essa medida pode ainda ser arriscado no campo da argumentação: afinal, admitir que o problema é hormonal, e não uma questão de educação e caráter, pode fornecer argumentos para quem afirma que “o homem não pode resistir a seus instintos naturais”.

“Além disso, a castração pode até impedir a ereção dos agressores, mas eles continuam tendo acesso a outros objetos que podem inserir nas vítimas se continuarem com comportamento sexual agressivo”, explica Lelah. “Somente em casos em que há uma alteração no cérebro, condutas irreversíveis mesmo, acredito que seja necessária uma medicalização mais forte que beire a castração química, mas esses casos são a minoria. E a castração química é o último recurso.”

Soluções possíveis

Cheguei à conclusão de que a solução mais eficiente, infelizmente, também a rota mais longa: educar as crianças para que tenham uma ética do desejo. Isso não significa castrar o comportamento sexual ou a vestimenta de meninas com medidas moralizantes e machistas, mas ensinar a meninos e meninas que seu desejo deve respeitar, sempre, a vontade do outro.

Outra medida importante é treinar delegados e policiais para fazerem um bom acolhimento das vítimas, já que é muito comum que as vítimas desistam da denúncia assim que são maltratadas na delegacia, conforme me lembrou Edson: “Já existe vergonha, constrangimento, receio, medo. Se lá for mal atendida, não vai querer dar sequência. Lembro mulheres que me procuraram depois de um mau atendimento e foi muito difícil convencê-las a seguir em frente.”

Enfim, a maioria dos casos de estupro à brasileira não é fruto de problemas de segurança pública, mas de uma cultura machista que prega um poder do homem sobre a mulher. O crime de estupro tem uma característica no Brasil: a cifra negra. A expressão “cifra negra” significa que um número muito pequeno de ocorrências de um determinado crime chega ao conhecimento das autoridades. Deste já pequeno número, uma ínfima parcela chega ao conhecimento do judiciário, e uma menor ainda resulta em condenações. E se as vítimas nem chegarem a denunciar, como vamos conseguir punir os agressores?

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