Contra o racismo diário

De dia, ele estuda na PUC; de noite, recolhe o lixo dos ricos: como um negro lida com o preconceito no Rio

Jimin Kang (texto) e Pilar Olivares (fotos) Da Reuters, em Belford Roxo (Rio) Pilar Olivares/Reuters

Felipe Luther passa suas tardes estudando para obter o diploma em uma das principais universidades do Brasil, enfiado nos morros verdejantes do Rio, acima das praias chiques do Leblon e de Ipanema.

À noite, ele recolhe o lixo das comunidades ricas.

"Quando conto aos meus colegas de classe sobre meu emprego, com frequência ficam chocados", diz Luther.

Em 2017, ele obteve uma bolsa de estudos para o programa de ciências sociais na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), uma escola privada da qual saíram presidentes do Banco Central e astros do cinema.

A rara oportunidade de Luther e sua rotina diária são lembretes das disparidades na sociedade brasileira —e no Rio em particular—, onde uma operação policial matou dezenas em maio e reviveu o debate sobre desvantagens e riscos enfrentados por homens negros como ele.

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Aos 38, Luther já tinha desistido anteriormente da faculdade para trabalhar e sustentar sua família, varrendo ruas para a companhia municipal de limpeza urbana, desde 2009.

"Muitos alunos como eu começam a trabalhar quando ainda são muito novos", disse ele, que vem de origens humildes no extremo norte do Rio, a mais de duas horas de distância do campus.

Estudar na PUC aproxima Luther de seus sonhos, ao mesmo tempo em que o coloca face a face com a elite predominantemente branca de um país no qual 54% da população é de descendência africana.

Em 2000, o Censo apontou que os brancos apresentavam uma probabilidade cinco vezes maior de frequentar uma universidade do que seus pares negros, mestiços e indígenas.

"Como há muito poucos negros nesta universidade renomada, muitos veem os negros como serventes, não como colegas de classe", disse Luther, lembrando situações constrangedoras.

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No elevador, uma mulher achou que Luther era um ascensorista. Em outro episódio, alguém tentou lhe pagar pela xícara de café, ao pensar que ele era um funcionário da cafeteria.

Dói, de certa forma, pois você fica com a impressão de que aquele não é seu lugar.
Felipe Luther, estudante

As desigualdades educacionais do Brasil só cresceram durante a pandemia, já que as aulas online forçam os estudantes a dependerem de recursos domésticos, aumentando a disparidade entre as pessoas de maior e menor poder aquisitivo.

Por meses, Luther lia à noite à luz de velas em Niterói, do outro lado da baía em relação ao campus, onde sua república estudantil geralmente carece de energia elétrica.

Ele carregava seu celular e laptop no trabalho e os utilizava para estudar até o início de seu turno como varredor de rua, das 21h até as 5h.

"Para meu curso, que exige muita leitura, preciso de um computador melhor do que o que tenho. Mas algumas pessoas nem mesmo têm um computador", ele disse, notando os vários desafios para os alunos mais pobres forçados a estudar em casa.

Nem todos os celulares são bons o bastante para trabalhos e nem todos têm um telefone ou pacotes de internet que permitam baixar suas leituras.

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Protestando contra o 'genocídio'

Eventos recentes no Rio ressaltaram desafios ainda maiores enfrentados por Luther como homem negro.

Em maio, uma operação policial no Jacarezinho, uma comunidade pobre no norte do Rio, visava a organização criminosa do narcotráfico Comando Vermelho.

O tiroteio, que durou horas, matou 27 homens no bairro e um policial, transformando a operação em uma das mais mortíferas da polícia na história e provocando reação de grupos de direitos humanos.

Luther, que tem duas irmãs que vivem a poucos minutos do Jacarezinho, participou de uma manifestação no Rio uma semana após a operação, usando a data oficial da abolição da escravatura no país para protestar contra a violência policial contra os afro-brasileiros.

"Não ao genocídio do povo preto", dizia o cartaz de um manifestante.

Luther diz que vive sob medo constante de violência policial e que permanece fora das ruas em certos bairros à noite.

Mesmo se fosse rico ou famoso, em ainda estaria vivendo em um corpo negro em uma cidade, um estado, um país onde os negros parecem ser descartáveis.

Mais de três quartos das quase 9.000 pessoas mortas pela polícia brasileira ao longo da última década eram homens negros, segundo a ONG de direitos humanos Human Rights Watch.

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Conexão com ancestrais

Apesar das ameaças, a cultura afro-brasileira continua prosperando no Brasil, como faz há séculos.

Duas vezes por semana, Luther visita um terreiro local para praticar a umbanda, uma religião com origens nas tradições espirituais do oeste da África.

Vestindo roupas brancas com colares de contas pendurados em seu peito, participa de danças, canções e rituais com outros fiéis.

"Isso me conecta com meus ancestrais", ele disse.

Popularizada no Rio na década de 1930, a umbanda, assim como o candomblé, tem raízes no tráfico transatlântico de escravos, que trouxe até 5 milhões de pessoas escravizadas da África para o Brasil, dez vezes o número levado para os EUA.

Aqueles que buscavam praticar seus rituais sem serem importunados pelos europeus misturavam suas tradições nativas com elementos do catolicismo, criando religiões sincréticas, atualmente praticadas por mais de meio milhão de pessoas no país.

As igrejas brasileiras com frequência servem como centros comunitários, como aquela na qual Luther fez seu cursinho gratuito para a faculdade, em 2017, e que o colocou em sua jornada para a PUC-Rio.

Assim que conseguir seu diploma, Luther diz que uma de suas metas é lecionar em comunidades de baixa renda, visando abrir a porta para a próxima geração de aspirantes a universitários.

"Eu quero retribuir a outros jovens ao permitir a eles a esperança de que isso é possível", disse.

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