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Após viver "sonho americano", Brasil amarga com zika e crise econômica

18.fev.2016 - Mães de bebês com microcefalia no centro de saúde Fundação Altino Ventura, no Recife (PE) - Mauricio Lima/The New York Times - Mauricio Lima/The New York Times
Mães de bebês com microcefalia na Fundação Altino Ventura, no Recife (PE)
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Simon Romero

Em Ipojuca (PE)

10/03/2016 13h47

Eles eram jovens e desfrutavam a versão brasileira do sonho americano: comprar um carro, entrar para uma igreja, formar uma família.

Como milhões de outros, eles tinham conseguido chegar à classe média, em expansão no país. Haviam até se mudado para Califórnia, um bairro de trabalhadores bem sucedidos que deixaram a cidade grande e empobrecida ali perto.

"Foi aquele momento mágico em que tudo parecia possível", disse Germana Soares, 24.

Então, no sexto mês de gravidez de Soares, o casal descobriu que suas fortunas, assim como as do país, podiam mudar rapidamente. Um exame de rotina mostrou que seu filho pesava muito menos do que deveria.

Os médicos temiam que ele, como centenas de outros bebês brasileiros nascidos nos últimos meses, tivesse microcefalia, uma doença incurável em que as crianças nascem com cabeças de tamanho menor que o normal.

Os médicos a encheram de perguntas sobre o vírus da zika, que Soares havia contraído no início da gravidez. Seu marido, Glecion Amorim, 27, logo caiu numa espiral de preocupação. Soares reuniu coragem e rezou, tentando manter o espírito positivo.

Então mais um choque: Amorim, um soldador que acompanhava o ímpeto do país para se transformar em um dos maiores produtores mundiais de petróleo, foi demitido com centenas de outros. O enorme estaleiro onde ele construía petroleiros estava vacilante em meio aos escândalos que abalavam o setor.

No período de algumas semanas, todo o sentido de suas vidas havia mudado. Todas as mazelas que afligem o Brasil --corrupção, a pior crise econômica em décadas, a queda de milhões de pessoas da classe média para a pobreza, a epidemia de zika e o surto de casos de microcefalia que atinge o Nordeste--  de repente bateram à porta de sua casa de dois quartos, produzida em série, com um carro compacto parado na entrada.

"Eu pensava que seria lindo ver o Havaí", disse Soares, enumerando a lista de sonhos que o casal tinha até recentemente. "Todos aqueles grandes planos são passado. Minha prioridade tem de ser cuidar do meu menino especial."

24.fev.2016 - Vanessa de Assis Lins (dir), segura a filha de cinco meses,Valentina Vitória Gomes,enquanto enfermeiras acompanham eletroencefalograma na criança em Recife (PE) - Mauricio Lima/The New York Times - Mauricio Lima/The New York Times
Vanessa de Assis Lins (dir), segura a filha de cinco meses,Valentina Vitória Gomes,enquanto enfermeiras acompanham eletroencefalograma na criança, no Recife
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Sua luta oferece uma rápida visão das milhares de famílias brasileiras que hoje enfrentam a perspectiva de criar uma criança deficiente na pobreza, no rastro da epidemia de zika.

Os pesquisadores ainda não podem afirmar com certeza que o vírus causa microcefalia nos bebês, mas pelo menos 641 crianças brasileiras nasceram com essa condição desde outubro --um forte aumento detectado pelos médicos nos últimos meses--, e as autoridades investigam outros 4.222 casos, principalmente aqui na pobre região Nordeste do país.

Segurança recente

Soares e Amorim pensaram que finalmente haviam escapado da vida difícil no Recife quando se mudaram para Califórnia, no início da década. Foram os anos do boom, quando dezenas de milhares de trabalhadores chegaram ao porto de Suape, um extenso complexo industrial construído para ajudar a impulsionar o Brasil rumo à elite dos países produtores de petróleo.

Enormes descobertas de petróleo em alto-mar e a abertura de uma nova fronteira agrícola na borda da floresta Amazônia haviam projetado o Brasil para o cenário global, colocando-o em posição para atender à demanda da China por matérias-primas.

As autoridades brasileiras construíram canais de concreto em terras atingidas pela seca, ferrovias pelo interior e belos estádios para a Copa do Mundo de Futebol.

A demanda por trabalhadores era tão intensa que os patrões de Amorim lhe ofereceram uma casa de dois quartos, uma das quase 800 construídas em série nesta cidade empresarial.

"A certa altura, vinham aqui mil ônibus por dia para transportar os trabalhadores", disse Aldo Amaral, 44, o presidente do sindicato que representa os trabalhadores no complexo portuário. "Era um sucesso econômico que deveria durar décadas."

Soares e Amorim o abraçaram sem hesitar.

Quando a moeda brasileira subiu, sua renda combinada chegava a equivaler quase US$ 40 mil por ano (R$ 145,6 mil). Eles instalaram um grande televisor de tela plana na sala, entraram para uma congregação evangélica, contrataram um fotógrafo para seu casamento, viajaram de motocicleta a praias paradisíacas e até de avião nas férias para Fernando de Noronha, um arquipélago no Atlântico que poucas pessoas no mundo terão a chance de ver.

"Nós tínhamos até seguro-saúde que nos dava acesso a hospitais particulares", disse Soares, lamentando sua atual situação de dependente do sistema público, caracterizado por histórias de horror sobre negligência dos médicos e a falta de leitos que obriga os pacientes a dormir nos corredores. "Era o momento perfeito para termos um bebê."

31.jan.2016 - Germana Soares com seu filho Guilherme, que tem microcefalia, em sua casa em Ipojuca - Mauricio Lima/The New York Times - Mauricio Lima/The New York Times
Germana Soares com seu filho Guilherme
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Golpe súbito

Entusiasmado quando Soares engravidou, o casal ofereceu um "chá de revelação", uma festa para revelar o sexo do bebê, e anunciou aos amigos e parentes que teriam um menino.

Eles tentaram continuar esperançosos mesmo depois que os médicos levantaram a possibilidade, durante a gravidez de Soares, de que seu filho pudesse ter microcefalia. Eles pensaram em abrir uma loja de roupas para bebês com a indenização que Amorim recebeu ao perder o emprego no estaleiro.

Então, em 27 de novembro, Guilherme nasceu. No início os médicos disseram que o bebê parecia bem. A notícia provocou gritos de felicidade entre os parentes na sala de espera e uma comemoração de abraços e danças improvisadas que pareciam um "bloco de carnaval", segundo Soares.

Mas uma enfermeira voltou com uma atualização. Parecia haver algo errado quando mediram a cabeça de Guilherme. A circunferência era de 32 centímetros, o limite superior para ser classificado como microcefalia na época.

Um silêncio baixou sobre o quarto de hospital enquanto os parentes cuidadosamente digitavam a palavra "microcefalia" na máquina de pesquisa de seus smartphones.

"Eu ouvi o número 32 e comecei a chorar", disse Amorim.

Os médicos mantiveram Soares e o filho hospitalizados por uma semana enquanto realizavam testes. Exames de imagens confirmaram que Guilherme tinha dano cerebral associado à microcefalia.

O golpe fez o casal repensar tudo. Soares tinha ficado tão animada ao saber da gravidez que deixou seu emprego de corretora de imóveis, pensando que poderia criar seu filho só com o salário do marido. Mas depois que ele perdeu o emprego os dois se viram no redemoinho da crise econômica. 

Mais de 6 milhões de brasileiros caíram da classe média para a pobreza desde 2014, segundo economistas do Bradesco, um dos maiores bancos do país.

Em vez de abrir uma loja de roupas, como tinha imaginado, Amorim investiu em algo mais acessível: um buggy de praia. Todos os dias ele dirige até Porto de Galinhas, uma área próxima onde há muitos hotéis, e tenta atrair turistas para fazer passeios pela praia.

Em um mês bom, ganha cerca de US$ 625 (R$ 2.275). No total, disse ele, a família terá sorte se sua renda anual chegar a US$ 7 mil (aproximadamente R$ 25 mil).

27.fev.2016 - Aline da Silva Ferreira, 15, com seu filho de 4 meses, Luis Guilherme, que nasceu com microcefalia, em terreno próximo a Vertentes, no nordeste do Brasil - Mauricio Lima/The New York Times - Mauricio Lima/The New York Times
Aline da Silva Ferreira, 15, com seu filho de 4 meses, Luis Guilherme, que nasceu com microcefalia, próximo a Vertentes (PE)
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

"Preciso manter um sorriso no rosto e ser simpático, apesar dos pensamentos que agitam minha mente", disse Amorim. "Sou o que ganha dinheiro agora, e é minha responsabilidade pôr comida na mesa todos os dias."

Soares disse que demorou para perceber que talvez nunca mais possa ter um emprego, diante do tempo geralmente necessário para cuidar de crianças com microcefalia, que costumam apresentar problemas como dificuldades de fala e de audição e atraso no aprendizado. Guilherme, disse ela, já começou a ter espasmos musculares, que, segundo os médicos, são indícios de convulsões mais tarde na vida.

"Ele chora tanto e precisa tanto de amor que não posso deixá-lo com outra pessoa", disse ela.

"Eu costumava me considerar uma mulher independente", acrescentou, fazendo uma pausa para olhar pela janela. "Mas essa fase da minha vida acabou. Não posso voltar ao trabalho."

Labuta diária

Soares sai de casa algumas vezes por semana, para consultas com médicos no Recife. Ela acorda Guilherme às 5h para pegarem uma van fornecida pelos órgãos municipais para transportar pacientes. Ir de carro está fora de questão, já que a viagem de ida e volta ao Recife consome cerca de R$ 90 em gasolina, um gasto muito além de suas posses.

Cruelmente, sua mudança para Califórnia, que um dia pareceu proclamar suas ambições de independência, hoje parece isoladora. Enquanto Amorim percorre as praias atrás de clientes, uma parente do Recife às vezes visita Soares e Guilherme. Mas os parentes têm seus próprios empregos e suas famílias, por isso ela passa muitos dias sozinha com o filho.

Em uma tarde de sábado recente, sua TV de tela plana estava sintonizada em um evento de skate no Rio de Janeiro, apresentando competidores de todo o Brasil.

"Não sei se meu filho um dia poderá fazer uma coisa dessas", disse ela.

16.fev.2016 - Agente municipal borrifa inseticida para combater o Aedes aegypti no Recife (PE) - Mauricio Lima/The New York Times - Mauricio Lima/The New York Times
Agente municipal borrifa inseticida para combater o Aedes aegypti no Recife (PE)
Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Soares tenta manter uma aparência de normalidade. Elefantes, hipopótamos e leões bordados enfeitam as paredes do quarto de seu filho, sob as palavras "Safári do Guilherme". Uma rede contra mosquitos envolve seu berço, demonstrando a nova consciência do casal sobre vírus como os da zika, dengue e chikungunya.

Como tantas outras mães que recentemente deram à luz a bebês com microcefalia, Soares se mantém informada sobre a doença no WhatsApp, o serviço de mensagens pela internet que é uma sensação no Brasil.

Elas trocam atualizações dobre a disseminação do vírus, informações sobre microcefalia, relatos de que as autoridades poderão dar subsídios de cerca de US$ 220 (cerca de R$ 800) por mês às famílias pobres com bebês com esse problema, e até piadas ocasionais para levantar o ânimo.

Uma das mães em Salvador, a 672 km ao sul do Recife, começou a compor poemas sobre microcefalia que distribui entre o grupo no WhatsApp. Um de seus textos, "Microcefalia não é o fim", marcou tanto Soares que ela o recita quando o clima em sua casa começa a pesar:

Você sabe o que é preconceito?

É algo que não vai nos afetar

Porque estamos aqui

Para lutar por nossos anjos.

Avanço difícil

Amorim diz que está ocupado demais tentando pagar as contas para pensar em sua infelicidade. Quando chega à casa, depois do trabalho, navega na Web procurando empregos de soldador, perguntando-se se tem sentido candidatar-se a trabalhos em Moçambique, país de língua portuguesa no sul da África.

Apesar das conclusões de dezenas de testes médicos, ele disse que ainda tinha esperança de que Guilherme não tivesse microcefalia, já que a circunferência de sua cabeça está no limite superior que indica essa condição.

"Não é que eu não o aceite", disse ele. "Mas na minha mente ele é normal."

Enquanto se adapta aos desafios e aos custos de criar Guilherme, o casal também luta para evitar o despejo. O estaleiro está tentando retomar a casa deles, dizendo que Amorim não trabalhou o tempo suficiente para assumir a plena propriedade do imóvel.

O casal se uniu a outras dezenas de famílias em um processo, afirmando que as leis imobiliárias do Brasil permitem que continuem em suas casas.

Construídos em menos de uma década, seu bairro e as áreas ao redor de Ipojuca já dão sinais de decadência.

Alguns em Califórnia construíram muros altos ao redor de suas casas para evitar assaltos. Os motoristas desviam dos buracos nas ruas, sacudindo sob o sol equatorial. Grafites em algumas casas falam sobre o desgaste das aspirações do bairro.

De sua varanda, Soares e Amorim podem ver o fogo na chaminé da refinaria de petróleo no porto de Suape, que custou quase US$ 20 bilhões (R$ 72,8 bilhões), cerca de oito vezes a estimativa inicial. Como muitos outros projetos ambiciosos que foram lançados no Brasil durante o boom, ela não foi concluída.

O estaleiro adjacente, onde Amorim trabalhava, luta para evitar o colapso. Seus donos estão enfrentando escândalos de suborno e a crise na indústria de petróleo do país.

"É como se estivéssemos encalhados aqui agora", disse Amorim, aninhando seu filho no colo. "Nunca sonhei uma vida como esta para Guilherme."