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Por que São Jorge tem tantos devotos no Rio?

Devota de São Jorge veste camiseta com imagem em referência ao santo e carrega uma vela vermelha durante a celebração realizada na região central do Rio de Janeiro, que tem feriado no dia de São Jorge - Lucas Landau/UOL
Devota de São Jorge veste camiseta com imagem em referência ao santo e carrega uma vela vermelha durante a celebração realizada na região central do Rio de Janeiro, que tem feriado no dia de São Jorge Imagem: Lucas Landau/UOL

Gerardo Lissardy

Da BBC Mundo

23/04/2015 07h26

Fernandes dos Santos Freitas caminha rumo ao altar para reverenciar São Jorge, embora à primeira vista poucos o tomariam como uma pessoa religiosa. "Sou devoto desde criança", garante o aposentado de 70 anos, usando um chapéu panamá e sapatos brancos, com um relógio dourado grosso no pulso e óculos escuros no rosto.

Mas sua camiseta dá a pista: nela, está estampada a imagem do "santo guerreiro", com uma capa roxa, montado em um cavalo branco, cravando uma lança em um dragão.

Freitas está na Igreja São Gonçalo Garcia e São Jorge, na Praça da República, no centro do Rio de Janeiro, que a cada 23 de abril transborda de devotos de São Jorge, uma multidão heterogênea que vêm crescendo nos últimos tempos na cidade.

Como todos que oram ali diante da grande estátua de São Jorge, Freitas acredita que esta figura lhe oferece proteção contra os perigos do Rio.

"Estamos vivendo no Brasil, em todo o país, uma violência muito grande. E o devoto de São Jorge busca sua proteção para se prevenir contra maldades, assaltos e assassinatos", explica ele.

Mais devotos

Há 16 anos responsável por esta igreja, o padre Wagner Toledo acompanhou de perto este aumento de devotos. "Vi acontecer ano após ano", diz.

E acrescenta que pode observar esta crescente fé ao santo também ao longo do ano, com mais e mais adesivos em carros e roupas ou músicas sobre São Jorge vistos pelas ruas da cidade. Hoje, existe no Rio todo um mercado próprio em torno do santo.

O fenômeno é tão forte que, em 2001, o Estado do Rio decretou feriado nesta data em homenagem a São Jorge. Milhares de católicos e praticantes de religiões afrodescendentes realizam cultos, missas, celebrações e realizam festas.

Toledo admite que tanto criminosos quanto policiais oram pedindo segurança para o santo, que, segundo a lenda, derrotou seus inimigos.

"O rapaz da favela ou aquele que trafica não deixam de ter fé em seu coração. Assim como também o tem o policial, que deseja realizar sua missão e voltar para casa a salvo", explica.

O percussionista Rubens Leite, de 57 anos, garante ter vivido uma experiência mística com o santo.

"Tive um acidente vascular cerebral e, quando saí do coma, vi São Jorge passar ao meu lado montado em seu cavalo", conta Leite.

Ele se define não só como católico como também umbandista, religião na qual o santo é chamado de Ogum.

Sincretismo

São Jorge, um guerreiro que acredita-se ter nascido no ano 280 na Capadócia, onde hoje fica a Turquia, é um exemplo do sincretismo religioso brasileiro.

Quando os escravos começaram a chegar ao Brasil vindos da África, eles adaptaram suas crenças para sobreviver ao domínio branco e católico: fingiam ser devotos de São Jorge, mas na verdade adoravam a Ogum, algo então proibido.

O porto do Rio foi uma das principais portas de entrada de escravos no país e, por isso, a cidade viveu uma "violenta interação cultural", destaca André Chevitarese, historiador especialista em religião da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"O Rio de Janeiro é um grande laboratório multiétnico e de interações culturais, como mostra o caso de São Jorge, que é visto ao mesmo tempo por um prisma católico, umbandista e do candomblé", afirma Chevitarese.

Ele conta que, quando estas práticas religiosas foram aceitas pela Igreja Católica e deixaram de ser perseguidas, São Jorge se transformou em "um fenômeno de massa".

A partir dos anos 1970, o santo passou a estar presente até na música e nos desfiles de carnaval.

Nesta quinta-feira, as escolas de samba fazem festas em suas quadras, enquanto confluem para a igreja na região central do Rio, ao mesmo tempo e sem conflitos, católicos, umbandistas, adeptos do candomblé e espíritas.

Trata-se de uma oportunidade para a Igreja Católica. A instituição tem no Brasil mais fiéis que em nenhum outro país do mundo, mas vem perdendo força há alguns anos diante do aumento do número de evangélicos, que, em sua maioria, não têm fé em São Jorge.

"A Igreja aproveita esta devoção ao santo para comunicar os valores da fé cristã", explica padre Toledo.

'Fé em alguém'

As histórias em torno de São Jorge abundam no Rio. Saionara Cortes, de 53 anos, conta que seu filho "teve um acidente muito feio" em 2013, e ela pediu por ele ao santo e o tatuou em seu ombro esquerdo em agradecimento.

"No ano passado, tive outro problema com meu filho e, agora, tenho que fazer outra tatuagem", diz ela, que é católica e trabalha com serviços de limpeza.

Ela prefere não revelar o contra-tempo da vez, mas diz que se trata de algo "muito mais sério que o acidente".

O advogado Carlos José Sezza, de 43 anos, acredita que São Jorge lhe protege em uma cidade que, no ano passado, teve 4.939 homicídios e 158.078 assaltos, segundo dados oficiais.

"Nem sei mais o que é assalto. Passo por vários lugares a qualquer hora do dia e sempre sinto a presença de São Jorge", garante.

Paulo Picciari, de 64 anos, é músico em uma banda de rock e leva no peito uma medalha do santo. Ele diz que sua fé em São Jorge é "muito importante" e que a herdou de seus pais. "Precisamos ter fé em alguém, já que não podemos ter fé nos políticos."