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Estuprada, grávida e com medo de ser presa: a história de uma vítima

BBC
Imagem: BBC

Daniel Silas Adamson

Do Serviço Mundial da BBC

04/11/2015 07h56

Nos Emirados Árabes Unidos, são comuns os casos de mulheres imigrantes sendo presas acusadas de terem relações sexuais fora do casamento.

Uma dessas mulheres, uma filipina que foi estuprada, relatou o drama que enfrentou para conseguir fugir do país.

O vilarejo nas Filipinas onde Monica vivia não tinha muita infraestrutura: não havia clínica, escolas e iluminação pública. Ela também não via perspectiva de melhorar de vida ou conseguir um bom emprego.

Com três filhos e um marido que ganhava um salário que mal dava para alimentar a família, Monica resolver seguir o exemplo de milhares de conterrâneas: tentar a sorte como doméstica nos Emirados Árabes Unidos. Ele viajou dez horas de ônibus até a capital, Manila, se inscreveu em uma agência de empregos e pouco tempo depois estava a caminho do país árabe para trabalhar como doméstica de uma família local.

O que parecia ser um encantado mundo novo com prédios luxuosos e shoppings foi se transformando em um pesadelo à medida que Monica sentia falta dos filhos e era maltratada pelos seus patrões.

Na casa havia outro empregado, um motorista paquistanês. Meses depois de chegar, Monica se viu sozinha com o motorista em um dia que a família toda saiu.

"Eu estava limpando, na cozinha. Então ele chegou... Ele segurava uma faca enquanto me obrigava (a manter relações com ele)... eu não podia fazer nada. Eu estava sozinha, mesmo se eu gritasse, estava sozinha", disse.

Ela não contou a ninguém sobre o estupro e, três meses depois, percebeu que estava grávida. As leis dos Emirados Árabes Unidos determinam que sexo fora do casamento é um crime.

Monica não tinha como provar que tinha sido estuprada e a gravidez se transformou em prova de seu crime.

Temendo a prisão, ela escondeu a gravidez o quanto pôde.

"Sabia que eles poderiam me mandar para a cadeia e estava com muito medo", disse.

Sharia e Zina

Nos Emirados Árabes Unidos, a sharia (Lei Islâmica) forma a base do Código Penal e o sexo fora do casamento é classificado como "zina", uma categoria de crime que também inclui adultério, fornicação e homossexualidade.

Não há números oficiais mostrando quantas pessoas foram condenadas por crimes desse tipo. Mas sabe-se que essa leis pesam como uma espada de Dâmocles sobre as milhares de mulheres asiáticas e africanas que emigraram para o país para trabalhar como domésticas.

Uma investigação do Serviço Árabe da BBC sugere que centenas de mulheres imigrantes são presas nos Emirados Árabes Unidos todos os anos acusadas por estes crimes, mesmo quando o sexo é consensual.

Segundo a organização Human Rights Watch (HRW), o código penal "zina" viola as leis internacionais de direitos humanos. Grupos de defesa dos direitos humanos também dizem que essas leis resultam em punições desproporcional de mulheres.

Houve vários casos de domésticas sentenciadas a chibatadas e, em casos extremos, apedrejamento - mas não há provas de que estas punições chegaram a ser executadas.

A investigação da BBC confirma que mulheres acusadas de sexo fora do casamento são acorrentadas. Imagens feitas com uma câmera escondida em um tribunal do país mostrou uma jovem filipina caminhando com dificuldade por um corredor, com os pés acorrentados.

Sharla Musabih, ativista americana que passou mais de 20 anos nos Emirados Árabes Unidos gerenciando um abrigo para mulheres vítimas de abuso, disse que na capital, Abu Dhabi, viu uma doméstica etíope acorrentada pelos tornozelos a uma cama horas depois de dar à luz. Como Monica, a mulher tinha sido estuprada.

Rothna Begum, pesquisadora da Human Rights Watch, afirma que o acorrentamento de mulheres acusadas de fugir ou desrespeitar as leis zina é "prática padrão" no país.

O governo não atendeu aos pedidos da BBC para discutir as leis zina e o tratamento dado a imigrantes que trabalham como domésticas.

Programa de rádio

Para Monica e outras mulheres grávidas que correm o risco de serem presas nos Emirados Árabes Unidos por sexo fora do casamento a saída mais óbvia é a fuga. Mas, a filipina se viu sem saída devido às leis do país.

As domésticas são trazidas para o país seguindo o chamado sistema kafala - um acordo no qual o direito da imigrante de trabalhar, mudar de emprego e voltar para casa depende totalmente do empregador que pagou pela entrada dela no país. Este sistema deixa as mulheres vulneráveis e sem proteção legal.

Em 2014, a Human Rights Watch entrevistou 99 das cerca de 146 mil domésticas que, estima-se, trabalham no país.

A maioria relatou que não recebe horas extras - algumas chegavam a trabalhar 21 horas por dia - e muitas contaram que não recebiam seus salários.

Outras relataram que eram mantidas presas nas casas dos patrões. Vinte e quatro relataram abuso sexual e quase todas tiveram os passaportes confiscados, apesar de isto ser contra as leis do país.

Em 2014, sem poder esconder a gravidez, Monica implorou à patroa que a mandasse de volta às Filipinas. A patroa, invocando a kafala, negou o pedido e disse que o contrato ainda não tinha terminado.

Se ela desse à luz no país, Monica provavelmente seria acorrentada e levada à Justiça. Aos sete meses de gravidez, desesperada, ela apostou suas fichas em um audacioso plano.

Monica entrou em contato, pelo Facebook, com o apresentador de um programa de rádio nas Filipinas. Ela deu a ele o número de um celular que mantinha escondido na cozinha e o apresentador ligou.

Trancada em um banheiro e entrando ao vivo no programa, Monica contou que tinha sido estuprada, estava grávida e desesperada para voltar para casa. "Quero ir embora, mas eles não deixam", disse.

O apresentador perguntou se a família sabia do que tinha acontecido e Monica contou que não.

"Esta é a parte mais dolorosa da história. Ela tem um marido nas Filipinas e ele não sabe", disse o apresentador para os milhares de ouvintes.

O plano funcionou. Após a grande repercussão do caso, o governo filipino pressionou as autoridados dos Emirados Árabes Unidos.

Em semanas, o tempo necessário para encontrar uma doméstica substituta vinda da Indonésia, os patrões de Monica devolveram o passaporte, compraram uma passagem e a enviaram de volta às Filipinas.

A volta não foi fácil. Inicialmente o marido não aceitava o que tinha acontecido e culpava Monica pelo estupro.

A mãe dela se ofereceu para criar a criança, mas, depois de um tempo, o marido dela mudou de ideia e decidiu criar o filho de Monica.

Quando conversou com a BBC, a filipina estava no oitavo mês de gravidez e um exame confirmou que ela teria um menino. Desde então, a reportagem perdeu o contato com ela.