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Tim Vickery: Em vez de bater continência ou reverenciar intervenção militar, temos de repudiar velhos erros

Arthur Zanetti presta continência após levar a prata nas argolas nos Jogos do Rio - Getty Images
Arthur Zanetti presta continência após levar a prata nas argolas nos Jogos do Rio Imagem: Getty Images

Tim Vickery

Colunista da BBC Brasil*

30/09/2016 12h31

Tenho o privilégio, de vez em quando, de fazer um programa de televisão com Charles Gavin, ex-baterista de Os Titãs e enciclopédia ambulante da música brasileira.

No papo de bastidores, ele identificou o meu gosto e me deu um presente maravilhoso - o disco Edison Machado é Samba Novo, uma joia da primeira metade dos anos 60, quando a turma daqui, saindo da Bossa Nova, misturava samba com jazz moderno para fazer um coquetel cheio de suingue.

Uma música me pegou tanto que eu ficava - e ainda fico - tocando sem parar. Chama-se Solo, com uma melodia cativante na qual Machado brilha na bateria, os metais têm uma conversa animada entre si e um jovem pianista rouba a cena, tocando com uma força e delicadeza que lembram McCoy Tyner.

Ele se chama Tenório Júnior. Na verdade, chamava-se, porque faz 40 anos que não está mais entre nós. Estava em turnê em Buenos Aires com Vinicius de Moraes em 1976 quando desceu do quarto de hotel para comprar um remédio e nunca mais voltou.

Foi pego pelas forças de repressão locais, confundido com um "elemento subversivo". Passou os dias seguintes sendo torturado pela ditadura argentina e também por representantes da ditadura militar brasileira, conforme admitiu um representante do Serviço de Informação Naval argentino.

Segundo o livro A Onda que se Ergueu no Mar, de Ruy Castro, a inocência do pianista era clara, mas, àquela altura, ele já tinha virado um perigo. Sabia demais, tinha visto e sofrido demais a respeito das ligações entre os governos vizinhos de ultradireita. Portanto, Tenório Júnior foi "desaparecido".

Enquanto eu escutava a canção que Tenório Júnior toca tão cheio de vida, era impossível escapar de um pensamento: quatro décadas depois de seu trágico fim, qual seria a reação dos cinco filhos dele ao assistir, durante a Olimpíada, aos atletas brasileiros batendo continência no pódio?

Fiquei surpreso pela pouca repercussão gerada por esse gesto incomum nos Jogos - um gesto que, se não violava, testava os limites da proibição às manifestações políticas naquele momento. A judoca Rafaela Silva, por exemplo, declarou que não bateu a continência com medo de perder sua medalha de ouro.

Muitos argumentam que se trata simplesmente de uma obrigação de um militar diante da bandeira. Mas não é tão simples assim.

Não se veem atletas da grande maioria dos países fazendo isso, militares ou não. E parece que muitos desses atletas militares brasileiros não são militares na plenitude da palavra. São patrocinados pelas Forças Armadas, sem ter uma vida no quartel.

Na verdade, então, parece que o gesto de bater continência se trata de um ato de relações públicas. É uma maneira de os militares chamarem atenção pelo apoio, de R$ 18 milhões, dado ao esporte nacional.

Há aqui uma polêmica óbvia. Porque a verba utilizada na verdade sai dos cofres públicos. É, como escreveu o especialista em finanças esportivas Amir Somoggi, "dinheiro de todos os brasileiros".

Ele chamou a continência de "um precedente absurdo, revoltante e inaceitável. (...) Nosso país é uma nação totalmente desmilitarizada e o mundo nos vê incrédulo, como se fôssemos uma Coreia do Norte".

De fato, vários países (como aquele onde nasci) têm um passado - ou até mesmo um presente - muito mais militarizado, com histórico de guerras agressivas. Mas também não tem como negar que historicamente o Exército brasileiro tem sido um ator importante na política doméstica, culminando no capítulo infeliz da ditadura de 1964-85.

E diante da turbulência atual, tem até alguns extremistas se manifestando a favor de mais uma intervenção militar.

No ano passado, um general se encrencou ao convocar a juventude para "despertar para a luta patriótica". Nesse contexto, talvez o gesto de relações públicas mais eficaz - melhor do que o uso de atletas olímpicos - seria um repúdio aos erros do passado.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick