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Nos EUA, pais usam internet para abandonar filhos adotados no exterior

9.set.2013 - Melissa Puchalla se emociona ao falar de Quita, uma criança da Libéria que foi adotada por ela. Puchalla não conseguiu se adaptar a Quita e encontrou pais adotivos para a menina pela internet - Sara Stathas/Reuters
9.set.2013 - Melissa Puchalla se emociona ao falar de Quita, uma criança da Libéria que foi adotada por ela. Puchalla não conseguiu se adaptar a Quita e encontrou pais adotivos para a menina pela internet Imagem: Sara Stathas/Reuters

Megan Twohey

Em Kiel (EUA)

09/09/2013 16h28

Todd e Melissa Puchalla enfrentaram muitas dificuldades por mais de dois anos para criar Quita, uma adolescente problemática que haviam adotado, vinda da Libéria. Quando decidiram desistir da garota de 16 anos, descobriram em menos de dois dias novos pais adotivos, por meio de um anúncio na internet.

Nicole e Calvin Eason, um casal do Estado de Illinois, na casa dos 30 anos, respondeu rapidamente. Em e-mails, Nicole Eason garantiu a Melissa Puchalla que ela poderia lidar com a menina. "As pessoas que estão ao meu redor acham que eu sou incrível com as crianças", escreveu Eason.

Algumas semanas mais tarde, em 4 de outubro de 2008, os Puchalla se dirigiram de Westville, no Estado do Wisconsin, para a casa de Eason, em Illinois. A transferência ocorreu num parque para trailers, o Country ires Mobile Home Park, onde o casal vivia.

Não estavam presentes promotores ou autoridades de serviços de apoio a crianças. Os Puchalla simplesmente assinaram um documento autenticado declarando esses virtuais estranhos como guardiões de Quita. A visita durou algumas horas. Foi a primeira e a última vez que os casais se encontraram.

Para Melissa Puchalla, os Eason "pareciam maravilhosos". Se ela os tivesse examinado com cuidado, poderia ter descoberto o mesmo que a Reuters:

* As autoridades de proteção à infância haviam retirado os dois filhos biológicos de Nicole Eason anos antes. Um vice-xerife escreveu que o casal tinha "tendências violentas".

* O único documento oficial afirmando suas habilidades como pais -um deles supostamente redigido por uma assistente social que havia inspecionado a casa dos Easons- era falso, criado pelos próprios Easons.

* Nicole Eason e um outro homem, Randy Winslow, pegaram um menino de 10 anos anunciado na internet em 2006. Depois, Wislow foi preso e agora cumpre pena de 20 anos em um presídio federal por enviar e receber pornografia infantil.

Na primeira noite de Quita com os Eason, seus guardiões lhes pediram que fosse para a cama com eles, diz hoje a própria Quita. Os Easons dizem que nunca compartilharam sua cama com qualquer das crianças que levaram, mas Quita lembra claramente disso. Nicole, diz ela, dormia nua.

Dias depois de deixarem Quita com o casal, Melissa Puchalla não conseguiu mais entrar em contato com os Eason e não tinha nenhuma ideia do que havia acontecido com a menina. Passaram-se duas semanas até que as autoridades a localizassem, tirassem-na dos Eason e a devolvessem para o Wisconsin -sozinha, em um ônibus.

Nenhuma outra medida foi tomada pelas autoridades do Illinois, Wisconsin ou Nova York.

Mercado clandestino

Quando chegou aos Estados Unidos, Quita pensou que "estava indo para um lugar mais legal, um lugar seguro. Mas não era nada disso", diz ela hoje. "Passou a ser um pesadelo."

A adolescente havia sido jogada no mercado clandestino da adoção de crianças nos EUA, uma rede na internet, sem nenhum controle, onde pais desesperados buscam um lar para crianças que se arrependem de ter adotado. Como Quita, hoje com 21 anos, essas crianças descartadas são com frequência vítimas de adoções internacionais que não deram certo.

Por meio de grupos no Yahoo e Facebook, pais e outras pessoas anunciam crianças rejeitadas e depois as entregam a estranhos com pouco ou nenhum escrutínio do governo, algumas vezes ilegalmente, conforme constatou uma investigação da Reuters.

É um mercado amplamente ilegal no qual as necessidades dos pais são postas à frente do bem-estar dos órfãos que eles trouxeram para os EUA.

Uma autoridade do governo alertou funcionários dos serviços de proteção às crianças em todos os EUA que a prática está "colocando crianças em grande risco". Mesmo assim, não há leis especificamente voltadas para isso, e nenhum órgão governamental monitora os avisos na internet.

A prática é chamada de "private re-homing" (recolocação particular), um termo tipicamente usado por proprietários em busca de novos lares para seus animais de estimação. Com base em solicitações postadas em um de oito quadros de avisos desse tipo na internet, os paralelos são impressionantes.

"Nascido em outubro de 2000 --este lindo menino, 'Rick' veio da Índia um ano atrás e é obediente e ávido por agradar", diz um anúncio.

Uma mulher que diz ser do Estado de Nebraska oferecia um menino de 11 anos que ela havia adotado da Guatemala. "Estou totalmente envergonhada por dizer isso, mas nós realmente odiamos este menino", escreveu ela em julho de 2012.

A Reuters analisou 5.029 postagens de um período de cinco anos em um quadro de avisos na internet, num grupo do Yahoo. Em média, uma vez por semana havia um anúncio de oferta de criança para "recolocação". A maioria dos pequenos tinha idades de 6 a 14 anos e havia sido adotada de outros países, como Rússia, China, Etiópia e Ucrânia. O menor estava com 10 meses. Um participante se referiu aos fóruns de "recolocação" como "fazendas nas quais se selecionam crianças".

Um menino de 10 anos das Filipinas e outro de 13 anos do Brasil foram anunciados três vezes. O mesmo ocorreu com uma garota do Haiti, oferecida para "recolocação" aos 14, 15 e 16 anos.

"Eu a teria entregue a um serial killer, de tão desesperada que eu estava", escreveu uma mãe em um post em março de 2012 sobre sua filha de 12 anos.

Depois de informados sobre o que a Reuters descobriu, o Yahoo removeu o boletim Adopting-from-Disruption, no ar havia seis anos. Uma porta-voz afirmou que a atividade violava os termos de serviço da companhia. Depois disso, a empresa retirou também outros cinco grupos semelhantes dos quais tomou conhecimento pela Reuters.

Um fórum similar no Facebook, chamado Way Stations of Love, permanece ativo, mas privado. Uma porta-voz do Facebook diz que a página mostra que "a internet é um reflexo da sociedade".

Algumas das crianças "recolocadas" sofreram graves abusos. Uma menina adotada da China e depois enviada para uma segunda família contou que lhe fizeram cavar o próprio túmulo. Uma outra, uma menina russa, relatou como um garoto numa casa urinou nela depois de fazerem sexo. Ela tinha na época 13 anos e foi mudada de casa por três vezes em seis meses.

"Há centenas de pessoas procurando um novo lar para crianças", diz Glenna Mueller, uma mãe adotiva que anunciou na internet seu filho de 10 anos.

Pais que anunciam as crianças online dizem ter opções limitadas. Nos quadros de avisos, pais falam de filhos que se tornaram abusivos e violentos, aterrorizando-os e também a outras crianças na casa.

"As pessoas se envolvem em uma situação da qual não podem sair", afirma Tim Stowell, um pai adotivo que criou o grupo no Facebook no ano passado.

Perigos desconhecidos

Como a "recolocação" privada costuma passar ao largo do governo, o único exame das famílias potenciais é feito pelos pais que querem se livrar das crianças. Isso eleva o risco de que elas possam cair em mãos de pessoas perigosas.

No grupo analisado pela Reuters, mais de metade das crianças era descrita como tendo algum tipo de necessidade especial. Para cerca de 18 por cento havia a informação de que tinham uma história de vida que incluía violência física ou sexual.

"Se você anuncia detalhes de coisas como o uso de drogas ou abuso sexual, você está acenando uma bandeira vermelha" para os predadores, comenta Michael Seto, um perito em abuso sexual de crianças, do Royal Ottawa Health Care Group, do Canadá.

Em julho de 2006 -poucas horas depois de postar um anúncio oferecendo um menino de 10 anos que havia adotado à margem do sistema de adoção do governo dos EUA -Glenna Mueller se encontrou com Nicole Eason e Winslow, amigo de Eason, na frente de um hotel perto da casa de Mueller em Appleton, Estado do Wisconsin.

Lá, Mueller entregou o garoto, com uma nota dizendo que eles poderiam cuidar dele. "Eu queria que essa criança fosse embora", diz Mueller, uma ex-cuidadora de crianças.

Alguns meses depois, ela levou o menino de volta, após o serviço de proteção à infância do Wisconsin lhe informar que poderia ser presa por não ter envolvido as autoridades na transferência de custódia, segundo seu relato. O menino lhe contou depois que havia passado a maior parte do tempo em Illinois com Winslow.

Documentos da Justiça mostram que Winslow, então com 41 anos, negociava pornografia infantil no período em que o menino estava com ele no Illinois. Nos meses depois que o garoto se foi, Winslow passou um tempo numa sala de chat onde se vangloriava de modo chocante de molestar meninos e explicava como manter o abuso em sigilo: "Você só tem de criá-los para pensar que isso é algo certo e para não contar a ninguém", escreveu ele em uma conversa com um agente federal disfarçado.

Agora numa prisão federal em Elkton, no Estado de Ohio, Winslow recusou pedidos de entrevista. O menino completou 18 anos dias atrás. Seus pais adotivos não quiseram permitir que ele desse entrevista.

Salvaguardas frágeis

Há uma potencial salvaguarda para as crianças: um acordo entre Estados chamado Pacto Interestadual para a Colocação de Crianças, ou ICPC, na sigla em inglês. O pacto determina que se uma criança estiver para ser transferida para outro Estado, os pais têm de notificar as autoridades dos dois Estados. Dessa maneira, os potenciais pais poderão ser examinados.

Somente em janeiro de 2011 uma autoridade responsável por supervisionar o pacto de proteção à criança nos EUA chamou a atenção para o "grave perigo" da rede online.

Em um alerta nacional, um administrador do ICPC alertou que pais adotivos estavam enviando crianças para viver com pessoas encontradas via internet, colocando-as em "risco substancial".

Apesar da urgência, o funcionário, Stephen Pennypacker, diz que os Estados ainda não podem dar conta dessas transferências de custódia.

Crianças estrangeiras adotadas são especialmente propensas à "recolocação". A Reuters descobriu que pelo menos 70 por cento das que eram oferecidas no quadro de avisos do Yahoo eram classificadas como estrangeiras. Os norte-americanos adotaram 243 mil crianças no exterior desde o fim de 1990, mas nenhuma autoridade acompanha sistematicamente o que acontece com elas depois que chegam ao país.

Transferências como as que envolveram Nicole Eason -a mulher que desapareceu com Quita e levou um menino de 10 anos em um estacionamento de hotel- poderão nunca ser registradas.

Nicole Eason conseguiu pegar pelo menos seis crianças por meio da internet, apesar de sua história conturbada. Em 2000, segundo um relatório de autoridades do Estado de Massachusetts, a filha biológica dela, de 9 meses, foi retirada de sua custódia depois de ter sido atendida em um hospital com um fêmur quebrado "para o qual os pais não tinham explicação alguma".

Em 2002, cerca de uma semana depois do nascimento do segundo filho dela, autoridades da Carolina do Sul removeram o bebê de sua casa, segundo arquivos do xerife local.

As autoridades citaram a investigação de negligência em Massachusetts e as condições "deploráveis na casa da família na Carolina do Sul. "Os pais têm graves problemas psiquiátricos, além de tendências violentas", escreveu uma autoridade local em um relatório de março de 2002.

Na entrevista à Reuters, os Eason disseram que os dois filhos de Nicole viviam novamente com ela, mas, na realidade, o casal nunca as teve de volta, conforme informação de autoridades da Carolina do Sul e Massachusetts.

Eason descreveu seu estilo paternal desta maneira: "Cara, seja apenas um pouco mau, OK? ... Vou ameaçar espetar uma faca em sua bunda, eu vou. Vou persegui-lo com uma mangueira."

Quando indagada sobre os motivos da retirada de seus filhos, Nicole Eason disse que alguém estava mentindo.

"Não tive problemas com os serviços sociais", afirmou. "Isso é o que eu digo. (Reportagem adicional de Ryan McNeill e Robin Respaut em Nova York)