Topo

Esse conteúdo é antigo

Proibida em vários países, Ayahuasca atrai cada vez mais estrangeiros ao Brasil

Chá de Ayahuasca - iStock
Chá de Ayahuasca Imagem: iStock

05/02/2020 10h38

Eike Miro Mana está de volta à cidade de Kassel, na região central da Alemanha, depois de uma longa viagem por diversos países da América do Sul. Ao passar por Colômbia, Equador, Peru e Brasil, o psicoterapeuta alemão, de 33 anos, entrou em contato com a cultura dos indígenas da floresta Amazônica, especialmente a sua forma ancestral de medicina. E ele não está só nessa jornada de autoconhecimento. Cada vez mais estrangeiros se interessam pelas "curas tradicionais" dos povos nativos.

Foi no Acre, ao visitar o povo Huni Kuin, que o alemão conheceu melhor os efeitos da Nixi Pae, uma mistura feita com plantas da mata que vem chamando atenção da comunidade internacional. Existente em diversos grupos nativos, com diferentes nomes, a infusão da Chacrona (folha) com o Jagube (cipó) ficou mais conhecida pelo nome de Ayahuasca e hoje atrai não só curiosos, mas pesquisadores do mundo inteiro. No Brasil, ao contrário de outros países, o seu uso é legalizado para pesquisa e para rituais religiosos.

"Eu precisei de algum tempo para ter experiências profundas. Basicamente, bons sentimentos, conexão com o meu eu superior, com um lugar divino dentro de mim", disse Eike em entrevista à RFI. "Indígenas estão ajudando do jeito que podem, oferecendo o segredo deles, a inteligência dessa medicina que ajuda as pessoas, que dá oportunidade para olhar para dentro de nós mesmos e encontrar soluções para os problemas", completa.

"Os indígenas não são primitivos como muita gente pensa. Eles são muito inteligentes e sabem tudo sobre princípios sociais. Prestam muita atenção para usar as palavras certas, são abertos e sabem muitas coisas sobre o que é viver em harmonia com a natureza e com eles mesmos", afirma o alemão.

"Algumas pessoas pensam que é primitivo acreditar em plantas, em espíritos, mas é muito mais do que isso. É uma conexão profunda com a natureza, o que é muito importante para a humanidade, porque nós, brancos, estamos separados da natureza, e isso não pode dar certo", alerta.

Mundo se abre para a cura que vem da floresta

A chamada "medicina sagrada indígena" é cercada de muitos mistérios e também de muita energia e espiritualidade. A Chacrona contém uma substância chamada DMT (Dimetiltriptamina) que abre a consciência para novas perspectivas da realidade, conforme já comprovado cientificamente.

Utilizada por indígenas da Amazônia para a cura do corpo, da mente e do espírito, não se sabe ao certo há quanto tempo ela existe nem há certeza sobre a sua origem. Alguns estudiosos dizem que a Ayahuasca chegou aos indígenas graças aos Incas, que já a utilizavam há mais de 5.000 anos.

O líder indígena Txana Bane, da etnia Huni Kuin, que significa "gente verdadeira", foi o primeiro a sair de sua aldeia, no oeste brasileiro, para difundir essa tradição para o mundo. "Muitos povos conhecem a Ayahuasca, cada um chama de um jeito. Para nós, quer dizer o espírito da floresta, o espírito da Terra", explica.

"É uma forma de trabalhar com todas as forças da natureza, dos animais, das plantas e dos homens, pois nós somos parte da natureza. A gente fica feliz de poder compartilhar isso com o mundo e com outras culturas e tradições", completa.

Com a grande difusão do chá de Ayahuasca, a bebida vem sendo cada vez mais procurada por pesquisadores estrangeiros. É o caso do neurocientista espanhol Jordi Riba. "Depois de muitos anos estudando o mecanismo de ação da Ayahuasca e seus benefícios, percebemos que ela é capaz de modular áreas do cérebro que estão envolvidas no processamento de memórias emocionais", diz o pesquisador no documentário "Ayahuasca: O Espírito da Floresta - A resposta da Amazônia para o mundo", uma produção independente brasileira que reúne especialistas no assunto.

O psicofarmacólogo que vive em Barcelona usa a ciência para estudar a Ayahuasca e seus benefícios há 20 anos. "É uma medicina ancestral usada na Amazônia e estudamos seu potencial terapêutico. Conduzimos uma pesquisa recente mostrando que é possível induzir melhorias muito rápidas em sintomas de depressão de pacientes que não respondem aos tratamentos tradicionais", disse em suas conclusões.

Documentário e canal no YouTube reúnem informações sobre Ayahuasca

Mesmo que os estudos sobre a Ayahuasca avancem dentro e fora do Brasil, ainda há muita desinformação sobre o assunto. Foi pensando em suprir esse vazio, que o documentarista carioca Bruno Veiga Valentim, autor do longa metragem "Ayahuasca: O Espírito da Floresta", criou o Ayahuasca Portal. Há quatro anos, Bruno estuda a origem, os benefícios e os riscos dessa bebida, já tendo participado de inúmeros ritos espirituais, conferências científicas e visitas a aldeias indígenas a fim de conhecer o poder dessa medicina da floresta.

"As pessoas associam a Ayahuasca a drogas que são prejudiciais à saúde. Mas ela não é considerada nem droga nem alucinógeno. Ela é enteógena, ou seja, uma substância natural que faz você entrar dentro de você e se realinhar com você e com a sua comunidade, diferente de uma substância alucinógena que te distancia da realidade", explicou o pesquisador à RFI.

Bruno Valentim conta que, no Brasil, a Ayahuasca foi inicialmente difundida através das chamadas religiões verdes, como União do Vegetal, Barquinha e Santo Daime. Esta última reúne elementos das culturas indígena, afro-brasileira e cristã.

"Eu percebo nas minhas andanças que a Ayahuasca não é somente um catalisador individual. É também um catalisador social porque ela transforma comunidades, como está transformando as aldeias indígenas que estão resgatando o seu valor", revela o documentarista.

"De um modo geral, a sociedade está enxergando os indígenas de uma forma diferente em razão das medicinas. Mas o contrário também acontece. Em função dessa valorização dos pesquisadores internacionais e da sociedade em geral, os indígenas estão se sentindo mais autoconfiantes em serem indígenas e em manterem a sua cultura", disse.

"Eu descobri que há 20 anos os indígenas se sentiam mal com as suas vestimentas, com a sua cultura e com sua língua. E assim, os cânticos sagrados foram se perdendo, a língua foi se perdendo, muito também em razão da evangelização dos índios. Agora, muitas aldeias estão resgatando sua cultura através da Ayahuasca", explica.

Ressignificando a cultura indígena

É o caso, por exemplo, da etnia Shanenawa, localizada no município de Feijó, no estado do Acre. Por lá, a medicina tradicional recebe o nome de Uni e o seu estudo está na base da criação das aldeias Shane Kayá e Morada Nova, dentro do território indígena Katukina/Kashinawá. O local é sede para projetos voltados ao desenvolvimento sustentável e estudos da espiritualidade com o uso da medicina indígena.

"Muita gente confunde e diz que é droga, mas sem noção do que está falando. Dizem que causa alucinação, mas quem fala isso nem chegou perto e não conhece, só ouve as pessoas falarem", lamenta o líder espiritual Naynawa Shanenawa, em entrevista por telefone à RFI.

"Os meus ancestrais usavam o Uni para cura do corpo e do espírito. Mas, hoje, as pessoas têm desrespeitado a forma de uso tradicional do meu povo. A sociedade está usando 'as medicinas' como festividade, para se divertir, sem ser com as pessoas certas. Essa é uma preocupação que temos", conta o líder indígena.

Conferência Indígena sobre Ayahuasca

O Acre foi o palco da primeira Conferência Indígena sobre Ayahuasca. O evento reuniu, além das etnias Shanenawa e Huni Kuin, outros povos que fazem uso da medicina da floresta.

"A Ayahuasca está unindo os povos nativos da Amazônia. Em função de sua expansão e de seu uso irresponsável, muitos líderes de povos que têm um histórico de guerras, hoje estão juntos, em uma só voz, para poder mostrar as medicinas da floresta para o mundo", observa Bruno Valentim, que esteve presente e documentou todas as conferências ocorridas em 2017, 2018 e 2019.

"O homem está mexendo com a natureza por não saber a importância das espécies. Vemos as queimadas, poluição, isso tudo compromete as futuras gerações", preocupa-se Naynawa Shanenawa. "Hoje o mundo está em busca de ser curado através dessa medicina sagrada", afirma.

"Os índios sempre falam que os nawás (homem branco) estão doentes porque estão afastados da natureza e não estão conectados com a sua própria essência. Eles acreditam que o trabalho do índio hoje é curar o branco. É interessante ver que os indígenas estão curando as mesmas pessoas que os mataram no passado", analisa Bruno Veiga Valentim.

Conscientização e meio ambiente

Nessa luta para manter suas tradições ancestrais, os povos indígenas contam com aliados de todas as nacionalidades. O belga Ben Meeus, 26 anos, é um destes estrangeiros que viajam ao Brasil atrás do chá de Ayahuasca. Ben trabalhou na ONU, ajudando na formação de povos indígenas sobre os seus direitos. Hoje ele não hesita em dizer que a Ayahuasca é a cura para a humanidade.

"Atualmente há povos indígenas viajando com as suas medicinas, com a sua cultura e com a cura para a humanidade, pois eu acredito nisso. O meu papel é encontrar formas de diálogo com os governos e com a comunidade internacional", afirma.

"Minha presença é para dar apoio, para ver quais são os caminhos, em nível internacional também, para que as pessoas certas, responsáveis com essa bebida, possam se apresentar e talvez ter mais uma abertura, uma discussão pelo menos em nível internacional sobre essa cultura", conclui.