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Promoção da democracia não é um complô dos neoconservadores dos EUA

A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, se emociona ao visitar uma fábrica de Oskar Schindler, membro do partido nazista judeu que salvou 1.200  pessoas do Holocausto na Polônia. Hilton viajou a Cracóvia, na Polônia, para assistir à reunião que marca o 10 º aniversário da Comunidade das Democracias (CD), na última segunda-feira (02 de julho)  - Reuters
A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, se emociona ao visitar uma fábrica de Oskar Schindler, membro do partido nazista judeu que salvou 1.200 pessoas do Holocausto na Polônia. Hilton viajou a Cracóvia, na Polônia, para assistir à reunião que marca o 10 º aniversário da Comunidade das Democracias (CD), na última segunda-feira (02 de julho) Imagem: Reuters

Anne Applebaum

Em Cracóvia (Polônia)

07/07/2010 01h33

Uma grande quantidade de arabescos dourados enfeitava os camarotes do teatro. Nas luxuosas cadeiras estofadas em veludo lá embaixo, embaixadores usando sáris se aglomeravam junto a ativistas usando ternos amarrotados. No sábado, só havia espaço para o discurso de Hillary Clinton, no décimo aniversário da reunião da Comunidade de Democracias, e a secretária de Estado dos Estados Unidos tinha uma multidão atrás de si. Primeiro ela cumprimentou a sua predecessora Madeleine Albright, que foi cofundadora da comunidade, uma década atrás, juntamente com Bronislaw Geremek, que à época era o ministro das Relações Exteriores da Polônia.

A seguir, ela falou não exatamente sobre a democracia, mas sobre a sociedade civil, cujos “ativistas, organizações, congregações, escritores e repórteres que trabalham usando meios pacíficos para encorajar os governos a fazerem um trabalho melhor. Juntamente com o governo representativo e os mercados funcionais, a sociedade civil fortalece a governança democrática e a prosperidade de base ampla”, disse ela. Mas a sociedade civil está correndo risco, e ativistas em muitos países estão presos, incluindo em algumas nações que se autointitulam democracias: Egito, China, Mianmar e Zimbábue foram mencionados, entre outros.

Atrás de mim, um diplomata kuaitiano rabiscava furiosamente anotações em árabe. Nos camarotes, delegados da Moldova e da Mongólia inclinavam-se para frente, tentando captar cada palavra da secretária. Mas será que nos Estados Unidos alguém a estava escutando?

Esta é agora a questão central, não apenas para a Comunidade de Democracias – uma organização que foi benignamente negligenciada pelo governo Bush e recentemente reativada pelos poloneses –, mas também para todos os defensores da “promoção da democracia”, um grupo do qual eu faço parte. A promoção da democracia norte-americana assumiu diferentes formas nas últimas décadas, desde o apoio clandestino do governo Reagan a dissidentes anticomunistas até a reativação da Rádio Afeganistão Livre em 2002. Mas, no momento, este conceito, na sua totalidade, está enfrentando dificuldades.

Isso deve-se em parte ao fato – conforme disseram recentemente Hillary Clinton e outros – de a própria democracia estar enfrentando problemas. Segundo todos os parâmetros, os autocratas do mundo ficaram mais enraizados no poder no decorrer da última década. Países tão diferentes quanto a Rússia, a Venezuela e o Irã tornaram-se adeptos do uso da retórica da democracia – juntamente com eleições fraudadas, partidos políticos de mentira e até mesmo organizações da sociedade civil controladas pelo Estado – a fim de repelirem a pressão por mudanças.

Mas a promoção da democracia ficou injustamente desacreditada pela invasão do Iraque, uma decisão que é lembrada com bastante frequência como sendo nada mais do que uma tola “guerra pela democracia” que previsivelmente fracassou. O fato de o Iraque não ter conseguido subsequentemente metamorfosear-se da noite para o dia na Suíça do Oriente Médio é citado como um exemplo de motivo pelo qual a democracia jamais deveria ser forçada ou promovida em qualquer país. Esse argumento tolo encontrou um forte eco: desde que tornou-se presidente, Barack Obama tem se esquivado da palavra democracia em contextos estrangeiros – ele prefere falar em “nossa prosperidade e segurança comuns” -, como se o vocábulo pudesse se constituir em uma espécie de “bushismo” perigoso.

Na verdade, a promoção da democracia não foi inventada por um grupo secreto de neoconservadores; ela é uma antiga ferramenta de um Estados Unidos bipartidário, bem como da política ocidental e de relações exteriores, que em determinadas ocasiões se superpôs à diplomacia pública e ao auxílio externo. Os alemães utilizaram as suas fundações políticas partidárias para fortalecer a democracia, especialmente na Europa Oriental; os britânicos às vezes atuam através do Commonwealth, a organização de ex-colônias britânicas e outras na África e na Ásia. Nós, norte-americanos, temos a tendência a gastar dinheiro com a mídia (a Rádio Europa Livre e as suas estações derivadas modernas), com treinamento (de juízes, jornalistas e ativistas) e, sim, às vezes com o financiamento clandestino de democratas em países autoritários.

De forma frustrante – pelo menos para aqueles que financiam esses projetos –, nada disso garante o sucesso, e muitos desses projetos fracassam estrondosamente. Revoluções podem ser revertidas. Mas bons dissidentes nem sempre tornam-se bons presidentes. Até mesmo as democracias consolidadas exigem manutenção constante, e sociedades divididas por intensos conflitos étnicos ou pobreza extrema podem ser frágeis.

Nada disso significa que essas ferramentas não funcionam nunca – no passado elas funcionaram, e poderão funcionar novamente –, especialmente se, conforme sugeriu Hillary Clinton, nós nos concentramos decisivamente no apoio à cultura da liberdade de expressão e de associação, sem a qual eleições e partidos políticos são meras farsas. Nós não podemos impor a democracia pela força, mas podemos contornar a Organização das Nações Unidas (ONU) e o seu corrupto Conselho de Direitos Humanos, talvez usando a própria Comunidade de Democracias para monitorar e investigar abusos da sociedade civil. Nós podemos também nos juntar a outros, não apenas na Europa, mas também na Coreia do Sul, na Indonésia ou no Chile – novas democracias que manifestaram preocupação suficiente para enviarem ministros importantes a Cracóvia na semana passada – na condenação daqueles que cometem abusos.

E nós podemos continuar financiando aqueles programas de treinamento e estações de rádio que poderão algum dia gerar frutos. Hillary Clinton anunciou a intenção do governo norte-americano de contribuir com US$ 2 milhões (R$ 3,56 milhões) para um fundo que fornecerá advogados, telefones celulares e apoio rápido a organizações cívicas que se encontram em situação difícil. Não foi muito – um amigo observou que algumas das pessoas na plateia tinham quantias maiores do que essa nas suas contas correntes –, mas tais coisas não têm que custar muito.

Além disso, até mesmo esse nível de apoio exige que alguém, ocasionalmente , diga que isso é necessário. Foi isso o que Hillary Clinton fez no sábado passado, e ela conquistou os aplausos internacionais. Eu só espero que ela seja aplaudida também nos Estados Unidos.