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Roteiro com clima rétro envolve mordomo e Sarkozy no mesmo escândalo

Presidente francês, Nicolas Sarkozy, foi à TV para se defender de escândalo político - AFP
Presidente francês, Nicolas Sarkozy, foi à TV para se defender de escândalo político Imagem: AFP

Anne Applebaum

14/07/2010 00h01

Fiquei impressionada com a complexidade do “affaire Bettencourt” na primeira vez que me explicaram, com muitas caretas, em Paris em abril. Parecia ainda mais improvável em junho, quando um político francês alegremente regalou-me com mais detalhes revoltantes. Contudo, na semana passada, quando essa história, que já tinha se tornado um escândalo político envolvendo propinas em dinheiro, uma viúva rica e um mordomo infiel, subitamente ameaçou envolver o presidente da França, decidi me focar mais.

Cuidadosamente, sentei-me para ouvir Nicolas Sarkozy, que apareceu na televisão na segunda-feira (12/7) à noite para explicar. E o resultado? Ainda não sei o que aconteceu.

Aqui vão os fatos, aqueles que conseguirei espremer para caber em uma coluna de tamanho razoável. A figura central da história é Liliane Bettencourt, uma beleza da sociedade francesa de 87 anos, herdeira da fortuna da L’Oréal, a mulher mais rica da França. Cerca de três anos atrás, a filha de Liliane, Françoise, processou a mãe, que tinha deixado parte dessa fortuna a um “amigo”, François-Marie Banier, um fotógrafo da sociedade de 63 anos. Entre outras coisas, Liliane deu a Banier quadros de Picasso e Matisse, dinheiro vivo e uma ilha nas Seychelles. Françoise alegou que sua mãe estava senil. Liliane declarou que a filha era sem graça, sem atrativos e ciumenta.

Se a história terminasse aí, já teria mantido os franceses entretidos por todo o verão. Mas, no curso do processo, Liliane demitiu parte de seus empregados domésticos, aparentemente porque tinham tomado o lado da Françoise. Foi um erro.

O mordomo, soube-se então, estava gravando as conversas na casa há semanas, usando um minúsculo gravador escondido em sua bandeja. Após perder o emprego, ele deu as gravações –mais de uma dúzia de CDs- à Françoise, e esta as entregou à polícia. E lá estava Liliane, falando vagamente sobre onde tinha colocado seus milhões. E lá estava o principal assessor financeiro de Liliane, descrevendo elaboradas formas de burlar o fisco e vangloriando-se de ter contratado a esposa do ministro do orçamento francês para dar às suas maquinações um ar de respeitabilidade.

Mas então, justo quando parecia que a coisa não poderia piorar, outra funcionária demitida, a contadora de Bettencourt –“Claire T.”- declarou que parte de seu trabalho era ensacar dinheiro em envelopes e entregar a políticos franceses. “Todos vinham pegar seus envelopes, algumas vezes de 100.000 (euros), ou até 200.000 (euros)”, disse ela a um site. Sarkozy, segundo ela, estava entre eles.

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Comoção. Caos. Declarações de negação. Um investigador oficial concluiu que o ministro não tinha agido mal e Claire T. foi acusada de mentir para se proteger. Na televisão na noite de segunda-feira, Sarkozy disse que era “uma vergonha” que tais alegações tivessem sido feitas. Ele atribuiu a enchente de propaganda negativa a pessoas que se sentem ameaçadas por suas reformas econômicas.

Mas isso nos deixa onde, exatamente? Jamais saberemos quem pegou os envelopes? Jamais saberemos se Liliane sabe o que aconteceu com seu Picasso? Suspeito que não, mas não importa. Esse escândalo já prejudicou Sarkozy –possivelmente a um ponto irreversível- porque confirma todos os estereótipos populares sobre a elite financeira e política francesa.

Os muitos personagens neste drama jogam com milhões de euros como se fosse dinheiro para brincar de banco imobiliário. Eles lançam insultos uns aos outros como se participassem de uma comédia de costumes do século 18. Eles desprezam os impostos como algo que não se aplica a eles, e, enquanto isso, cortam as pensões dos camponeses.

Em suma, eles agem e falam como aristocratas, não como democratas. E é isso que prejudica Sarkozy, que afinal foi eleito precisamente porque os franceses estavam cansados dos Chiracs e Mitterrands, com suas amantes em apartamentos do governo, seus caixas dois e seus amigos empresários questionáveis.

Há algo assustadoramente rétro neste escândalo, que poderia ter acontecido na França dos anos 30, quando a democracia parlamentar era fraca, o fascismo estava em ascensão, o Partido Comunista, patrocinado pelos soviéticos, era popular e ministros do governo estavam roubando dinheiro adoidado. Afinal, o pai de Liliane, fundador da L’Oréal, tinha uma apreciação pela política fascista e apoiou o regime Vichy. A filha irada de Liliane, por contraste, está casada com o neto de um rabino francês que morreu em Auschwitz.

O ministro do orçamento, cuja mulher teve o azar de ser contratada pelos Bettencourt, agora é ministro do trabalho. Assim, está encarregado de uma reforma na previdência extremamente impopular, que deve ser apresentada nesta semana e provavelmente será rechaçada pelos sindicatos, socialistas e até comunistas –eles ainda existem na França. Em sua campanha eleitoral, Sarkozy prometeu “romper com as ideias, os hábitos e o comportamento do passado”. Ainda assim, o passado voltou para ameaçá-lo -mais do que poderia ter imaginado.