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Hipocrisia norte-americana critica o governo, mas ainda espera que ele resolva tudo

Ex-governadora do Alasca, e ex-candidata a vice-presidente, Sarah Palin, discursa durante jantar de encerramento da convenção nacional do movimento popular conservador, "Tea Party", em Nashville, nos Estados Unidos (6/2/2010) - Josh Anderson/Reuters
Ex-governadora do Alasca, e ex-candidata a vice-presidente, Sarah Palin, discursa durante jantar de encerramento da convenção nacional do movimento popular conservador, "Tea Party", em Nashville, nos Estados Unidos (6/2/2010) Imagem: Josh Anderson/Reuters

Anne Applebaum

21/07/2010 00h01

Já assisti o vídeo de Sarah Palin “Mamãe Ursa”. Eu vi o Tea Party evoluir de uma piada para uma força política. Li sobre os candidatos da primária que querem reduzir o governo, derrubar o governo, queimar Washington.

Vi tudo, ouvi tudo e não acredito em nada. Uma rosa é uma rosa e é uma rosa –e hipocrisia é hipocrisia, seja na forma de socialismo champanhe ou mamães ursas que ficariam loucas se, Deus nos livre, seu abatimento nos impostos de hipotecas jamais fosse suspenso.

Se você não estava nos EUA o tempo todo, como é o meu caso, isso é o que você nota quando volta para casa: os americanos –com sua cultura jurídica, sua obsessão por segurança e, acima de tudo, seu vício nos programas de gastos do governo –exigem mais de seu governo do que quase todo o resto do mundo. Eles não querem apenas que o governo mantenha a paz e crie um campo igualitário para o funcionamento da sociedade. Querem que o governo garanta que todo acidente ou qualquer evento de azar seja prevenido ou plenamente compensado. E se o preço de suas casas cair, eles vão responsabilizar o governo por isso também.

Quando, por uma série de casualidades, um maluco contrabandeou explosivos para um avião no Natal, o público gritou por sangue e responsabilizou a Casa Branca novamente.

De fato, o maluco foi detido por um passageiro alerta, não pelo governo federal e, se a plataforma de petróleo jamais for consertada, será pelos esforços de uma empresa privada. Ainda assim, cada um desses eventos gera uma reação em cadeia: um novo programa do governo é criado, especialistas são contratados, novas máquinas são encomendadas para os aeroportos e novos monitores são enviados para o fundo do oceano. Foi assim que adquirimos a rede de segurança kafkiana que uma investigação extraordinária do Washington Post nessa semana chamou, bastante conservadoramente, de “um mundo oculto que está fugindo ao controle”.

Pois este mundo oculto, com suas 1.271 organizações de segurança e inteligência do governo e suas 854.000 pessoas com autoridade de segurança máxima, não foi criado por uma quadrilha totalitária secreta; foi montado como resposta a uma demanda pública. É verdade que os franceses querem se aposentar cedo e que os britânicos pensam que a saúde deveria ser gratuita, mas quando as coisas dão errado, os americanos também escrevem para seus representantes no Congresso e seu chefe de Estado exigindo ação. E precisamente por estarmos em uma democracia, o Congresso e o presidente respondem, aprovando uma lei, construindo um prédio.

O mecanismo também funciona quando não há uma emergência. Para ser mais direta: a classe média americana da direita, esquerda ou centro agora passou a esperar um nível de segurança financeira pessoal que –apesar dos estereótipos- a maior parte das pessoas nunca exigiria de seus governos. Em uma análise no início do mês, Brink Lindsey, vice-presidente do Instituto Cato, usou algumas estatísticas extraordinárias. A maior parte dos americanos, ao que parece, suspeitam do mercado livre. E a maior parte dos americanos aprovam os gastos do governo. A maioria dos americanos são cautelosos em relação ao comércio global, não confiam nos mercados livres e também acham que “os benefícios da Previdência Social ou do Medicare valem os custos desses programas”. E quando a amostra é restrita a pessoas que defendem o movimento do Tea Party? O número ainda é 62%.

Ainda assim, são exatamente estes programas, Previdência Social, Medicare e a lista sempre crescente de bolsas federais, que vão afundar o orçamento dos EUA nas próximas décadas, não a reforma de saúde do presidente Obama (que também não vai ajudar). Ainda assim em Washington, esses gastos são conhecidos como “terceiro trilho”: quem tocar neles, estará morto. O presidente George W. Bush falou um pouco sobre tornar os indivíduos mais responsáveis por sua aposentadoria, depois desistiu. A “privatização” da previdência, como foi descrita com desdém, era impopular demais, particularmente entre os próprios partidários de Bush.

Olhando em torno do mundo não parecemos tão excepcionais quanto pensamos. Os chilenos estão dispostos a economizar por sua aposentadoria. A maior parte dos europeus se reconciliou com a ideia que nem todo mundo, a qualquer idade e em qualquer condição, poderá ter a tecnologia médica mais cara. Pareceria absurdo na maior parte dos países um secretário de Estado ou de defesa viajando com dezenas de carros e seguranças, assim como a noção que o governo dá ao cidadão um alívio fiscal se ele compra uma casa, ou que escolas devem fechar se houver gelo nas ruas. Mas ainda assim não apenas exigimos níveis absurdos de segurança pessoal e política, reservamo-nos o direito de reclamar contra as amplas burocracias que criamos como resposta aos nossos apelos –democraticamente, constitucionalmente, abertamente.