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Filme conta verdade inconveniente sobre crise financeira nos EUA

Cena do filme "A Grande Aposta" com o ator Christian Bale - Jaap Buitendijk/Paramount Pictures/AP
Cena do filme "A Grande Aposta" com o ator Christian Bale Imagem: Jaap Buitendijk/Paramount Pictures/AP

18/12/2015 11h56

Em maio de 2009, o Congresso dos EUA criou uma comissão especial para examinar as causas da crise financeira. A ideologia era imitar a famosa Comissão Pecora dos anos 1930, que usou uma cuidadosa análise histórica para ajudar a moldar a regulamentação que deu aos EUA duas gerações de estabilidade financeira.

Mas alguns membros da nova comissão tinham um objetivo diferente. George Santayana comentou que "os que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo". O que ele não disse foi que algumas pessoas querem repetir o passado --e essas pessoas têm interesse em garantir que não nos lembremos do que aconteceu, ou que nos lembremos erroneamente.

Com certeza, alguns membros da comissão tentaram bloquear a consideração de qualquer relato histórico que pudesse sustentar os esforços para conter os banqueiros renegados. Como um desses membros, Peter Wallison, do American Enterprise Institute, escreveu a um colega republicano da comissão que era importante que o que eles dissessem "não minasse a capacidade da nova bancada republicana na Câmara de modificar ou rejeitar Dodd-Frank", a regulamentação financeira adotada em 2010. O que realmente aconteceu não importa; a linha do partido, literalmente, exigia contar histórias que ajudassem Wall Street a fazer tudo de novo.

O que me traz a um novo filme que os inimigos da regulamentação financeira realmente não querem que você veja.

"A Grande Aposta" (The Big Short) se baseia no livro homônimo de Michael Lewis, um dos poucos verdadeiros best-sellers que surgiram da crise financeira. Eu assisti a uma pré-estreia e acho que ele faz um ótimo trabalho ao tornar as tramoias de Wall Street divertidas, ao explorar o humor negro inerente a como ela caiu.

O filme realiza essa façanha principalmente personalizando a história, não se concentrando em abstrações, mas em indivíduos vivos que viram a podridão do sistema e tentaram ganhar dinheiro com essa percepção. É claro que ainda é necessário explicar o que foi tudo isso. Mas mesmo as peças explanatórias funcionam incrivelmente bem.

Por exemplo, ficamos sabendo como os empréstimos duvidosos eram reembalados em "obrigações de dívida colateralizada", supostamente seguras, em um trecho em que o chef Anthony Bourdain explica como o peixe da semana passada pode ser disfarçado de cozido de frutos do mar.

Mas você não quer que eu banque o crítico de cinema; você quer saber se o filme entendeu direito a história econômica, financeira e política subjacente. E a resposta é sim, de todas as maneiras que importam.

Eu poderia discutir alguns pontos: o grupo de pessoas que reconheceram que vivemos a mãe de todas as bolhas da habitação, e que ela representava grandes riscos para a economia real, foi maior do que o filme faz parecer. Ele incluía até alguns economistas (tosse) da corrente dominante. Mas é verdade que muitos atores influentes, aparentemente com autoridade, de Alan Greenspan para baixo, insistiram não apenas que não havia bolha, como que uma bolha nem sequer era possível.

E a bolha cuja existência eles negaram realmente foi muito inflada por meio de esquemas financeiros opacos que, em muitos casos, significam simplesmente fraude --e é um absurdo que no final basicamente ninguém tenha sido punido por aqueles pecados, a não ser os observadores inocentes, quais sejam, os milhões de trabalhadores que perderam seus empregos e os milhões de famílias que perderam suas casas.

Enquanto o filme capta bem a essência da crise financeira, a verdadeira história do que aconteceu é profundamente inconveniente para algumas pessoas muito ricas e poderosas. Elas e seus pistoleiros intelectuais contratados passaram, portanto, anos disseminando uma visão alternativa que o administrador de fundos e blogueiro Barry Ritholtz chama de a Grande Mentira. É uma visão que coloca toda a culpa da crise financeira no --você adivinhou-- excesso de governo, especialmente nas agências patrocinadas pelo governo que supostamente empurram muitos empréstimos para os pobres.

Não importa que a suposta evidência disto tenha sido totalmente derrubada, ou que antes da crise alguns desses mesmos pistoleiros tenham atacado aquelas agências não por emprestar demais aos pobres, mas por não emprestar o suficiente. Se o registro histórico vai contra o que os poderosos interesses querem que você acredite, bem, a história simplesmente terá de ser reescrita. E a repetição constante, especialmente na mídia cativa, mantém essa história em circulação, não importa a frequência com que mostrem que ela é falsa.

Sim, "A Grande Aposta" já foi tema de ataques virulentos nos jornais controlados por Murdoch; se o filme for um sucesso comercial e/ou ganhar prêmios, espere ver muitos mais.

O que é preciso lembrar, quando você vir esses ataques, é por que eles estão ocorrendo. A verdade é que as pessoas que fizeram "A Grande Aposta" deveriam considerar os ataques uma espécie de elogio: os atacantes obviamente temem que o filme seja tão interessante que mostre a verdade ao grande público. Esperemos que seus temores se justifiquem.