Carnaval partido

Seja no sambódromo ou nos blocos, nunca se viu tanta política no Carnaval brasileiro

Do UOL em São Paulo Raphael Dias/Getty Images

Política presente

Pelo segundo ano consecutivo, um tema político saiu triunfante na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. A Mangueira colocou mulheres, negros e índios como protagonistas de seu desfile campeão. Em São Paulo, a Mancha Verde levou o título do Carnaval paulistano e discutiu na avenida a luta pela igualdade de direitos. Nos blocos de rua, foliões usaram sua criatividade para transformar os desfiles em atos políticos, seja lembrando o assassinato da vereadora Marielle Franco ou atacando o presidente Jair Bolsonaro e suas polêmicas no primeiro Carnaval em seu governo.

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Alexandre Brum/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Quando a passarela se transformou em comício

O Carnaval de 2019 foi marcado como o segundo ano consecutivo em que um tema político triunfa na Marquês de Sapucaí. Mas a folia deste ano tem um traço inédito. Se, em 2018, a Beija-Flor foi campeã trazendo as mazelas do país com uma abordagem em que o povo passivamente sofre com os desmandos do políticos, desta vez, a Estação Primeira de Mangueira trouxe o protagonismo às mulheres, negros e índios. O enredo que procurou colocar os pingos no is da História do Brasil transformou-se em um verdadeiro manifesto em forma de canto, dança e artes plásticas para o deleite de quem assistiu ao desfile.

Se o Carnaval de rua sempre foi a arena ideal para manifestações políticas, servindo de caixa de ressonância para os humores da população com seus governantes, o desfile das escolas de samba sempre teve uma relação um tanto mais comedida com o tema. Afinal, para aqueles pequenos grupamentos de sambistas pobres, do morro ou do subúrbio, há cerca de 80 anos, o mais importante era poder brincar o Carnaval sem serem importunados pela polícia. Desta forma, o reconhecimento do poder público era fundamental.

Até que a tensão causada pela ascensão do prefeito Marcelo Crivella, notoriamente hostil ao Carnaval, fez que tudo mudasse. Em conjunção com o momento político do país, o desfile de 2018 trouxe, além da já citada Beija-Flor, o verdadeiro tsunami que foi o desfile do Paraíso do Tuiuti. As imagens do presidente vampiro e dos manifestoches ganharam páginas de jornais internacionais e já entraram para a história do Carnaval carioca.

O Carnaval de 2019 fortaleceu esta tendência. Além da campeã Mangueira, o Tuiuti novamente deu o seu recado e a São Clemente retomou sua veia debochada ao criticar a comercialização excessiva do Carnaval sem se esquecer do prefeito carioca. A tendência repercutiu em São Paulo. Escolas como a Águia de Ouro, Vai-Vai e Acadêmicos do Tucuruvi trouxeram temáticas politizadas e, em suas alas, protestaram contra a reforma trabalhista e pediram igualdade entre gêneros e raças. 

Se esse movimento será duradouro, somente o tempo dirá. Mas, no Carnaval, a tendência natural é a de que um modelo de enredo, quando vitorioso, acabe se tornando um paradigma a ser seguido pelas concorrentes. E, indubitavelmente, quanto mais o poder público for hostil ou indiferente às escolas de samba, maiores são as chances do adesismo institucional cair por terra. Aguardemos os próximos capítulos.
 

Veja os melhores momentos do desfile da Mangueira

Bruna Prado/UOL

Marielle presente

O grito que ecoou por todo o Carnaval. Assassinada no Rio de Janeiro em março do ano passado, a vereadora Marielle Franco se espalhou no Carnaval de todo o país por meio de seu rosto estampando em faixas, cartazes, camisetas e através de muitos gritos por justiça.

Marielle foi lembrada em Olinda, no bloco Eu Acho é Pouco. No Rio, o bloco que ajudou a fundar, o Se Benze Que Dá, fez uma bela homenagem para a vereadora, assim como Ilu Inã, em São Paulo, que desfilou em frente ao mural pintado com seu rosto. O mesmo aconteceu com o BaianaSystem, Explode Coração e Orquestra Voadora.

Na Marquês de Sapucaí, a Mangueira levou bandeiras com o rosto da ativista, assim como em São Paulo, onde a Vai-Vai levou Luyara Santos e Anielle Franco, filha e irmã de Marielle, para a avenida.

Marcelo Freixo, deputado federal pelo PSOL, desfilou com a Mangueira no desfile das campeãs. "Demos um recado, não fizemos um desfile. Continuem quebrando placas, que a gente vai vencendo Carnaval", disse.

Diego Padgurschi/UOL

Folia de direita

Quem pensa que Carnaval é coisa só da chamada "esquerda festiva" pode ir tirando seu bloquinho da chuva. Os foliões de direita também estiveram nas ruas.

Lucas Penteado, 28, não é da ala radical, nem se posiciona ideologicamente à direita, mas admite ter votado em Bolsonaro e vê excessos em protestos. "Não existe governo perfeito, vejo pontos positivos e negativos", opinou. 

Ele conta que esteve nesse Carnaval em muitos blocos onde presenciou protestos. "No desfile do Baixo Augusta teve muita gente que extrapolou, vi muita radicalidade". Penteado diz que chegou a passar no bloco dos Bolsominions na Vila Madalena (zona oeste), mas não parou porque não tinha ninguém.

Também pró-Bolsonaro, Joana Rodrigues, 36, não é a favor dos protestos contra o governo e não acredita que as manifestações prosseguirão para além da folia. "Foi só zoeira de Carnaval".

Assumidamente de direita, e da ala radical, Rebeca Andrade, 31, afirmou em alto e bom som: "Sou Bolsonaro e acho que o governo dele está bom sim, e foram apenas três meses, não dá para falar mal". 

Ao seu lado, também de direita e assumidamente radical, João Paulo, 34, se recusou a falar inicialmente, mas não se conteve e disparou críticas contra os protestos contra o governo no Carnaval. "É o marxismo cultural, típico da esquerda".

O casal diz ainda que gostaria que existissem blocos de direita, mas quando a reportagem perguntou sobre que música tocaria, instalou-se um impasse entre os dois. "Ah, pode ser MPB...", sugeriu Rebeca. "Epa, mas Chico Buarque não!", rebateu Paulo. Questionado se Lobão poderia estar no bloco, o folião conservador titubeou um pouco, mas depois respondeu que sim. "Ele saiu da doença."

Quem não concorda com o Carnaval

O Carnaval é uma arbitrariedade. Gasta-se tanto nestes dias e no dia seguinte não tem remédio no posto de saúde. O governo desperdiçar tempo e dinheiro com o Carnaval é um absurdo.

Marcelo Godoy, técnico de cinema nas proximidades do bloco Pagu

É muita gente, muito álcool e drogas. As pessoas perdem a noção. Carnaval era bom na minha infância, hoje acho que é um investimento perdido do governo. Esse dinheiro poderia pagar eventos culturais o ano inteiro, não só uma festa que poucos aproveitam.

Raquel Lopes, gerente financeira que estava na região do bloco do Pagu

Marlon Costa/Futura Press/Estadão Conteúdo

Bolsonaro é atacado e polêmicas viram fantasias

No primeiro Carnaval de seu mandato como presidente, Jair Bolsonaro recebeu ataques em diversos blocos. Antes mesmo da folia tomar as ruas, o boneco inspirado no político causou polêmica em Olinda, onde posteriormente foi hostilizado quando tomou as ruas.

Os escândalos dos "laranjas do PSL" e o episódio do tuíte do "golden shower" foram suficientes para que foliões em todo o país transformassem as polêmicas em fantasias criativas. Isso fora os frequentes gritos de "ele não" nos blocos.

Daniela Mercury, que foi criticada por Bolsonaro pela música "Proibido o Carnaval", uma parceria com Caetano Veloso, rebateu o presidente, que a postou uma sátira onde dizia que "Dois 'famosos' acusam o Governo Jair Bolsonaro de querer acabar com o Carnaval. A verdade é outra: esse tipo de 'artista' não mais se locupletará da Lei Rouanet".

"Sr. Presidente, sinto muito que não tenha compreendido a canção 'Proibido o Carnaval', que defende a liberdade de expressão e é claramente contra a censura. Percebo que há uma distorção muito grave sobre a Lei Rouanet. Parece que ela ainda não foi compreendida", disse a cantora em comunicado.

O Carnaval 2019 parece estar no ponto alto do movimento de conscientização da folia carnavalesca dos últimos tempos. Mais politizado sim, nem por isso menos alegre. E mais, as representações carnavalescas depreciativas das mulheres, negros, indígenas e LGBTQI+ já não são vistas com naturalidade, as tentativas de repressão policial não seguraram movimentos, gritos, faixas e adereços contra os discursos de ódio e discriminações.

Denilson Tourinho, Ator e bailarino do bloco Angola Janga, de Belo Horizonte

Júnior Lago/UOL

Nos blocos, os seios livres

Os seios livres deixaram de ser exclusividade dos blocos mais progressistas. Diversos desfiles contaram com as mulheres cada vez mais à vontade para quebrar esse tabu. Para a empresária Valéria Cristina, 47, o bloco é o que permite mais liberdade para as folionas. "Saio na rua só de body, sem medo de julgamentos. Estamos todos felizes demais aqui para isso. Aqui me sinto em segurança", disse a empresária no Tarado Ni Você, em São Paulo.

As amigas Marcela Tatajuba, Renata Gomes, Carina Ovale e Fernanda Santos foram fantasiadas de "esquadrão feminista". Entre adesivos de "GRL PWR", roupas de mulher maravilha, elas mandavam seu recado. "Sempre saímos no Carnaval assim, em bando, e levando nossas ideias contra o machismo".

No Tarado, seios à mostra ou mamilos cobertos por pequenos adesivos eram comuns de se ver. Mas se essa é uma novidade desse Carnaval, porém não é nada de novo na luta das mulheres contra a objetificação de seus corpos. É o que reforça a jornalista Bianca Castanho, 26. "São seios, apenas uma glândula. Por que os homens ficam sem camisa e isso não é um problema?".

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Marcelo de Jesus/UOL Marcelo de Jesus/UOL

O que marcou esse Carnaval foi a liberdade. O 'Não É Não' realmente aconteceu. Passei o Carnaval no Rio, e várias vezes que alguém queria chegar perto sem eu querer, dizia 'Não', e o cara atendia.

Carolina Ângelo, produtora, no bloco do BaianaSystem, em São Paulo

Alcione Ferreira/UOL

Um lugar para entender o feminismo

Diversos blocos colocaram o feminismo em pauta. Tradicionalmente, o bloco Vaca Profana é um dos que mais debate o assunto. Em Olinda, o desfile fez uma ode à liberdade do corpo com suas integrantes exibidos os seios em defesa da igualdade de gênero e respeito.

Para a psicóloga Ana Clara Ferreira, um bloco como o Vaca Profana é importante para desfazer "o clima machista de Olinda". "Já não há mais espaço para homens assediador babaca. A gente tem que se mostrar e, assim, mostrar que temos que ser respeitadas."
 

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O Carnaval é um ato político. Mais do que nunca é hora de se manifestar. Eu como professora de história sinto que é minha obrigação mostrar que a gente não está satisfeito com o que está acontecendo. Aquele vídeo que foi postado como se o Carnaval se resumisse àquilo, o Carnaval não é aquilo, Carnaval é cultura popular e temos que fortalecer isso de todas as formas.

Stéfani Bispo, professora de história, no bloco de Daniela Mercury, em São Paulo

Buda Mendes/Getty Images Buda Mendes/Getty Images

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