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Lula e Delfim tinham admiração mútua, apesar das divergências

Certo dia dos anos 80 do século passado, seu Frias, o então publisher da Folha, me chamou para fazer uma entrevista com o ex-ministro Delfim Netto, que era amigo dele, com quem eu nunca havia falado.

Estranhei, porque eu era repórter de cotidiano, nunca fui da área de economia.

"Por isso mesmo quero que vá você lá falar com ele para explicar algumas coisas. Nosso pessoal da economia ele só enrola..."

E seu Frias, o empresário mais jornalista que conheci, me passou a pauta. Pensei comigo: se ele enrola os especialistas, vai me dar um nó porque sou jejuno nesse campo.

Quando cheguei no majestoso escritório dele instalado num casarão no bairro do Pacaembu, fui muito bem recebido, atendido na hora.

Assim que entrei no gabinete do poderoso czar da economia durante o regime militar, Delfim me derrubou no primeiro round:

"Já sei, o Frias te mandou aqui para me fo..., mas você não vai me fo..., não... Fique à vontade, pode fazer as perguntas..."

Mais provável seria acontecer o contrário, pois ele tinha a fama de ser um dos homens mais inteligentes do país. Não sabia nem por onde começar, e ele já foi logo falando, vendendo o peixe dele, e eu só anotando no caderninho porque não sabia usar gravador. De vez em quando, arriscava uma pergunta sobre alguma coisa que não entendi.

Foi uma das entrevistas mais divertidas que já fiz. Delfim era, acima de tudo, um sujeito muito engraçado, dono de um humor cáustico que fazia lembrar o Jô Soares, na forma robusta e no conteúdo meio britânico, meio calabrês. Os dois formariam uma bela dupla de stand-up.

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O importante é que seu Frias gostou da matéria, eu me safei de perder o emprego e, como tantos outros colegas de ofício, me tornei amigo dele. Nos cruzamos muitas outras vezes em restaurantes, aeroportos, eventos empresariais, e ele sempre já com uma tirada nova na ponta da língua para detonar alguma figura conhecida.

Fui reencontrá-lo muito tempo depois, no começo dos anos 2000, nos corredores do Palácio do Planalto, onde eu trabalhava como secretário de imprensa do presidente Lula durante o primeiro mandato.

Da primeira vez, estranhei a ilustre presença, cujo nome não entrava na agenda e passava longe dos jornalistas. Logo me daria conta de como Lula gostava de conversar com pessoas que pensavam diferente dele. Desde os tempos de sindicato, não fugia de um debate de ideias. Foi assim que ele levou para o primeiro governo ministros que tinham feito campanha para José Serra, o adversário no segundo turno, como Luiz Furlan, na Indústria e Comércio, e Roberto Rodrigues, na Agricultura.

Delfim tornou-se um conselheiro voluntário não remunerado dos governos Lula porque os dois tinham uma admiração mútua, simplesmente.

Hoje, novamente presidente, Lula lembrou isso na nota oficial sobre o falecimento de Delfim Netto, que tanto criticava quando foi ministro nos tempos da ditadura e o metalúrgico nordestino despontava como líder sindical combativo no ABC paulista, nos anos 70, ao denunciar manipulação de índices de inflação pelo ministro da Fazenda para reivindicar maiores reajustes salariais.

"Na minha campanha em 2006, pedi desculpas publicamente (...) Delfim participou muito das políticas públicas naquele período. Quando o adversário político é inteligente, nos faz trabalhar para sermos mais inteligentes."

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Lula, Frias e Delfim tinham essa coisa em comum. Por isso, ficaram bons amigos, acima das divergências políticas. É algo cada vez mais difícil hoje em dia, com o país tão dividido entre "nós e eles", sem abertura para o diálogo civilizado.

Não é nostalgia, apenas uma triste constatação. Delfim deve agora estar contando para São Pedro histórias engraçadas de quando o Brasil não era tão polarizado e sem humor.

Vida que segue.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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