Kamala Harris entre o fim da euforia e o mentiroso Donald Trump
No último domingo, a dois dias do tão aguardado debate presidencial com Donald Trump, Kamala Harris e sua equipe tiveram de lidar com uma notícia que teria ajudado muito ao ânimo crescente dos democratas se tivesse chegado depois.
Uma pesquisa do jornal The New York Times com o Siena College, influente e amplamente respeitada, mostra Trump ligeiramente à frente de Harris, 48% a 47%, entre os prováveis eleitores em todo o país.
Desde a desistência do presidente Joe Biden, este colunista insiste na necessidade de uma atenção maior e uma leitura mais ampla, do que está em jogo nas eleições americanas e o que Trump e o projeto político de país em torno dele efetivamente representam.
Mais. Este colunista tem insistido que as análises e comentários sobre as eleições americanas devem olhar para as multidimensionais tensões sociais daquele país, em especial as questões atravessadas pelos dilemas de gênero, religião e, claro, raça.
Repito o que já escrevi e comentei, e que agora se espalha como expressão fluente: a entrada de Harris, e a maneira como ela foi recebida, criou uma "bolha de euforia democrata", que, agora, parece ter perdido força e exige um olhar para a realidade.
E qual é a realidade? A de que as forças ultraconservadoras que se mobilizaram em torno de Trump em 2016, para torná-lo uma resposta à eleição do negro Obama e suas políticas de expansão de direitos sociais, estão rearticuladas.
Na verdade, elas nunca recuaram. Elas permaneceram ali, em silêncio, nas sombras, mas prontas. Perceba que, a despeito da euforia causada pela entrada de Harris na jogada, Trump nunca perdeu votos significativamente. E isso já era um sinal.
Harris animou novos eleitores, ela energizou a comunidade negra, que parecia desencantada com Biden. Seu sorriso contagiante e sua alegria dançante atraiu uma juventude que parecia desinteressada por participar da eleição novamente.
Harris tem todos os méritos de ter chacoalhado a eleição por duas ou três semanas. Ela brilhou e recebeu o aval de todas as alas do partido. O problema, insisto, é que o que Trump representa é maior do que ele próprio.
Quem leu o famosíssimo "Como as democracias morrem", dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ou assistiu qualquer vídeo do segundo autor falando do livro, testemunha a ênfase que ele dá no "ressentimento branco". Analistas brasileiros não gostam do termo, porque acham que é "identitário" demais.
Mas, goste-se ou não, a estrutura de ressentimento de uma maioria branca cristã conservadora, uma população rural empobrecida e de trabalhadores brancos que se consideram fora das atenções de um governo progressista dando privilégios e priorizando demais negros e imigrantes ainda é determinante nos Estados Unidos.
Os cristãos brancos conservadores, evangélicos ou católicos, inclinados às vozes radicalizadas, ainda que não seja possível generalizar, costumam votar em bloco, estrategicamente, e isso afeta bastante (ou muda tudo) na política americana.
Por razões diferentes, mesmo de maneira descoordenada - o que significa que não é possível pensar num movimento identitário branco monolítico -, e com poderes diferentes na esfera social, esse grupo tem em comum uma ideia de que é preciso, e possível, tomar o país "de volta".
Então, o que esperar hoje?
Agora que a poeira baixou, a equipe de Harris deve estar treinando-a tendo como palavras orientadoras os discursos dos Obama e da própria Hillary Clinton durante a Convenção Democrata.
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Quero receberO casal Obama e a ex-candidata a presidenta foram enfáticos, dizendo que a parada é dura. Obama sabe que se trata de uma batalha quase que civilizacional. Ter um candidato endossado por grupos de supremacia branca nos Estados Unidos não é trivial. E Trump é isso.
Portanto, no debate de hoje, provavelmente teremos um Trump reanimado e uma Kamala tensa e cautelosa. Ambos terão a pesquisa do Times em mente, e isso fará diferença.
Kamala sabe que precisa demonstrar feitos e propostas, tornar a sua posição pública a partir dela mesma. Trump só precisa reafirmar. Como Trump costuma mentir sem rodeios, Kamala terá de fazer mais do que acusá-lo de mentir.
Kamala será contundente na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres e certamente tentará surpreender falando à classe trabalhadora, principalmente branca. Ela está brifada de que esta é sua zona cinzenta.
Trump, bem, ele fará o de sempre. Falas para produzir recortes de seu compromisso dos princípios cristãos, entoará sua retórica populista nacionalista reacionária, e, claro, reforçará seus ataques a Kamala como uma política fraca, incapaz de conduzir os EUA em conflitos internacionais, e tímida (ou comunista) demais para barrar a "invasão" de imigrantes ilegais.
Veremos quem vencerá.
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