Topo

Jamil Chade

Negacionismo do governo brasileiro ameaça ampliar pandemia, diz Bachelet

A chilena Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, durante entrevista coletiva em Genebra - Fabrice Coffrini/AFP - 4.set.2019
A chilena Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, durante entrevista coletiva em Genebra Imagem: Fabrice Coffrini/AFP - 4.set.2019

Colunista do UOL

30/06/2020 05h24

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, critica o comportamento do governo no Brasil de negar a gravidade da covid-19 e alerta que tal postura está ampliando o impacto da crise.

Em sua avaliação sobre como o mundo está reagindo ao vírus pronunciada nesta terça-feira em Genebra diante do Conselho de Direitos Humanos, a chilena citou especificamente o Brasil entre os governos negacionistas, ao lado de Burundi, Nicaragua, Tanzânia e Estados Unidos

"Preocupa-me que declarações que negam a realidade do contágio viral, e a crescente polarização sobre questões-chave, possam intensificar a gravidade da pandemia, minando os esforços para conter sua propagação e fortalecer os sistemas de saúde", indicou, numa referência direta a esses governos.

Ao longo dos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro insistiu em minimizar o vírus, criticar a "histeria" em relação à doença e promover tratamentos sem comprovação de resultados.

Hoje, com mais de 57 mil mortos e 1,3 milhão de casos, o Brasil é considerado como um dos principais epicentros da pandemia. Na comunidade internacional, porém, a reação do governo brasileiro é alvo de intensa preocupação e, na avaliação da OMS, não há um sinal de quando a pandemia atingiria seu pico.

Bachelet ainda alertou para a situação dos indígenas e da população afrodescendente, ainda que não tinha citado especificamente os países.

"Os povos indígenas também são particularmente vulneráveis. O acesso inadequado aos serviços de saúde e a outras instalações agrava seu risco de pandemia, enquanto a ausência de dados desagregados dificulta a adoção de medidas sob medida para atender às suas necessidades. Chegou a hora de acabar com esta negligência", disse.

"Onde quer que existam, dados desagregados indicam que os membros de minorias raciais e étnicas e os povos indígenas têm maior probabilidade de morrer de COVID-19 e são os mais atingidos por suas consequências sócio-econômicas", declarou.

"Isto é particularmente verdadeiro para pessoas de ascendência africana, que - em todas as áreas da diáspora afrodescendente - continuam a enfrentar uma educação desigual; serviços inadequados e acesso a cuidados de saúde; e formas cruzadas de discriminação estrutural que as colocam na linha de frente em empregos tão chamados "essenciais" que aprofundam sua vulnerabilidade", afirmou a ex-presidente do Chile.

"Ela exige urgentemente uma liderança fundamentada em clareza, evidências e princípios para proteger os membros mais vulneráveis da sociedade, e para enfrentar as profundas desigualdades que estão acelerando a incidência e o impacto da pandemia", insistiu.

Paz ameaçada

De acordo com a alta comissária da ONU, a pandemia ameaça a paz e desenvolvimento no mundo. "Seis meses após a detecção dos primeiros casos, fica claro que esta epidemia ameaça tanto a paz quanto o desenvolvimento - e que exige mais direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e não menos", alertou a representante da ONU.

"A discriminação mata. Privar as pessoas de seus direitos sociais e econômicos, mata. E essas mortes minam toda a sociedade. A covid-19 é alimentada por falhas sistêmicas na defesa dos direitos humanos", afirmou.

"Sem uma ação nacional e internacional rápida e decisiva, a pandemia porá um fim às esperanças de alcançar as Metas de Desenvolvimento Sustentável até 2030", alertou, numa referência aos objetivos sociais.

"Particularmente nos países mais pobres do mundo, o alto número de mortes, a perda maciça de empregos, especialmente na economia informal; as interrupções na educação, o aumento dos preços dos alimentos, e o aprofundamento da pobreza provavelmente levarão dezenas de milhões de pessoas à pobreza extrema, desfazendo uma década ou mais dos ganhos de desenvolvimento", disse.

Num recado a governos que tem criticado as organizações internacionais, ela ainda pediu que todos os líderes mundiais entendam "a importância vital deste momento e que tomem medidas imediatas para apoiar o trabalho das instituições multilaterais que estão lutando para ajudar os países e as pessoas nesta crise".

Bachelet, porém, não será a única a citar o Brasil. O governo de Jair Bolsonaro será alvo de série de denúncias na ONU nos próximos dias por sua responsa considerada como insuficiente diante da pandemia da covid-19.

Entidades como a Conectas e Comissão Arns prometem usar a ocasião para denunciar o Brasil. Outra iniciativa está sendo liderada por entidades como Amazon Watch, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Conectas Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Fundação Luterana de Diaconia (FLD), Geledés - Instituto da Mulher Negra, Grupo Tortura Nunca Mais - Bahia, Ilê Omolu Oxum, Instituto Vladimir Herzog, Terra de Direitos e outras.

Para essas entidades, "o não desenvolvimento pelo poder público de ações integradas para contenção da pandemia" deve ser considerado como um violação aos direitos humanos. Segundo eles, tais negligências afetam em especial a população que mais necessita do apoio do Estado na oferta de serviços essenciais e auxílios emergenciais.

Fundamentalismo religioso

Entre os aspectos destacados pelo grupo está o que chamam de "elementos do fundamentalismo religioso" que defendem uma "única verdade religiosa, a negação da ciência, menosprezo das mortes de Covid-19 e a pressão para classificar as igrejas como uma atividade essencial".

"De acordo com uma política ideológica de extrema-direita, a organização de uma "liturgia da morte" cria impedimentos para que os grupos vulneráveis tenham acesso à renda básica de emergência", alertam.

Um dos pontos da denúncia se refere à situação justamente de parcelas da sociedade que se viram mais expostas à pandemia.

"A crise da COVID-19 agravou a situação das mulheres que vivem na pobreza, atingindo a renda de 11 milhões de mulheres, 52,6% delas negras", afirmam. "As trabalhadoras domésticas foram consideradas na categoria de serviços essenciais por decretos de fechamento do governo local, tornando-se ainda mais vulneráveis. A violência doméstica aumentou durante a pandemia, a uma taxa de 30% (sob notificação)", apontam.

As medidas de austeridade introduzidas pela Emenda Constitucional 95/2016 também são denunciadas neste contexto. Segundo as entidades, ela "institui um congelamento nos gastos sociais por 20 anos, com redução significativa dos gastos públicos".

"Sob a crise social e econômica, a retórica "salvar a economia" fortaleceu uma agenda regressiva dos direitos dos trabalhadores, permitindo, por exemplo, salários reduzidos e suspensão de contratos durante a Covid-19, e negando a inclusão de uma série de categorias profissionais no esquema de Renda Básica de Emergência", disseram.

A situação da população negra também foi alvo do documento. "Em maio de 2020, os dados oficiais indicam que os afro-descendentes em São Paulo têm 62% mais probabilidade de morrer de Covid-19. Os negros que sustentam condições inadequadas de moradia, desempregados e no mercado de trabalho informal serão os mais afetados pela pandemia", completam.

Crise mundial

Na avaliação da ONU, a situação gerada pela pandemia é considerada como crítica. Preocupa, por exemplo, a realidade de crianças e fome. "A UNICEF informou que, a menos que haja uma ação urgente para proteger as famílias dos impactos econômicos da pandemia, o número de crianças vivendo abaixo das linhas nacionais de pobreza poderá aumentar em 15% em 2020, chegando a 672 milhões", disse. "O Programa Mundial de Alimentação estima que o número de crianças que sofrem de desnutrição aguda poderia aumentar em 10 milhões de crianças em 2020", afirmou.

Outro impacto se refere à destruição de milhões de postos de trabalho nos países em desenvolvimento. "Globalmente mais de 75% dos jovens trabalham em empregos informais, muitas vezes em setores muito afetados, tais como restaurantes e serviços de entretenimento", disse. "Isto terá um impacto profundo em muitos países, bem como nas tendências migratórias: os jovens com menos de 30 anos de idade representam cerca de 70% dos fluxos migratórios internacionais", alertou.

A alta comissária também cita a situação das prisões. "Os locais de detenção exigem cuidados de saúde melhorados, e as alternativas não-custódio devem ser ampliadas. Saúdo as ações tomadas por numerosos governos para permitir a libertação de dezenas de milhares de prisioneiros, de acordo com nossos apelos para enfrentar o contágio e a superlotação. Peço um maior enfoque na libertação de mulheres e crianças privadas de liberdade, à luz do baixo número de liberados globalmente, bem como ações para defender os direitos dos detentos estrangeiros à assistência consular", disse.

Recuperação

Para ela, a resposta dos governos à pandemia deve ser seguida por ações reais no campo dos direitos humanos. "Para garantir que o sofrimento dos povos seja terminado o mais rapidamente possível, e para permitir uma recuperação efetiva, as políticas devem abordar as desigualdades e as lacunas de proteção que tornaram as sociedades tão vulneráveis", defendeu.

"Observo que em alguns países, a recessão provocada pela pandemia já está levando a apelos das indústrias para que os regulamentos sejam flexibilizados - inclusive em setores onde os abusos dos direitos humanos são frequentemente relatados. Tais apelos devem ser resistidos", pediu.

"As estimativas socioeconômicas globais prevêem pelo menos dois anos de reduções dramáticas nos indicadores de desenvolvimento humano em todo o mundo", alertou. "Sem uma atenção próxima e dirigida à coesão social, à inclusão e à justiça, esses esforços não podem compensar a privação que varreu comunidades inteiras", alertou.

Censura

A ONU também critica a censura instaurada como resposta à pandemia. "Em todo o mundo, a COVID-19 também está sendo instrumentalizada para limitar o direito das pessoas de falar, expressar opiniões e participar na tomada de decisões que afetam suas vidas", disse, numa referência a países como Rússia, China, Kosovo, Nicarágua e muitos outros países.

"Observo relatos de ameaças e intimidação contra jornalistas, blogueiros e ativistas cívicos, particularmente em nível local, com o objetivo aparente de desencorajar críticas às respostas das autoridades à COVID-19", afirmou.

"A censura e a criminalização provavelmente suprimirão informações cruciais necessárias para enfrentar a pandemia", disse. "E somente o respeito por seus direitos - incluindo o direito de participar de decisões transparentes e responsáveis - inspirará as pessoas a confiarem nas políticas adotadas por seus governos", alertou.

"Jornalistas, defensores dos direitos humanos e ativistas da sociedade civil podem ajudar as autoridades a identificar e resolver deficiências em suas respostas à COVID-19 - e a repressão não é apenas violação injusta de seus direitos. Elas prejudicam a eficácia das políticas para prevenir e mitigar o impacto da pandemia", disse Bachelet.

"É vital que os líderes mantenham uma comunicação consistente, confiável e baseada em fatos com as pessoas a quem servem", alertou.