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Com 45 mil mortos em Gaza, Natal vira ato de indignação na Palestina

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Neste Natal de 2024, no Vaticano, o presépio montado trouxe inicialmente um menino Jesus embrulhado num lenço tradicional palestino. Um gesto de apoio à população de Gaza e de qualquer lugar do mundo que esteja sendo alvo de uma ocupação brutal. Dias depois, o lenço sumiu.

Num mundo fraturado, Gaza é o retrato de um colapso da humanidade. Um depoimento da derrota da diplomacia. E, ainda assim, o silêncio das potências e daqueles capazes de influenciar é revelador e reabre o debate sobre a cumplicidade diante de crimes atrozes.

A própria Santa Sé sabe, hoje, as consequências de quando opta por hesitar. No dia de Natal de 1942, o papa Pio 12 usou sua tradicional alocução na rádio Vaticano para emitir seu único comentário público sobre o genocídio dos judeus por parte da Alemanha Nazista.

"Este voto (a favor de um mundo mais justo) a humanidade deve às centenas de milhares de pessoas que, sem culpa própria, às vezes apenas por razões de nacionalidade ou raça, se encontram destinadas à morte ou a uma aniquilação progressiva", declarou Pio 12.

Não houve uma referência nem aos autores do crimes e nem uma declaração contundente de defesa dos judeus. Mas a frase foi suficiente para reverberar pelos corredores da diplomacia mundial e, desde então, o Vaticano tem sido alvo de uma polêmica sem fim sobre seu papel durante a Segunda Guerra Mundial.

Pio 12 foi acusado de não ter feito o suficiente para denunciar crimes cometidos por cristãos.

Há quem conteste essa versão. Alguns de seus confidentes mais próximos insistem que seu silêncio foi deliberado como estratégia para salvar vidas, principalmente a de judeus na Itália. Por décadas, a Santa Sé sustentava que não tinha informações para se pronunciar.

Mas uma carta encontrada recentemente ampliou o constrangimento e o debate. Nela, um padre jesuíta alemão alertava que 6 mil cidadãos judeus e poloneses eram assassinados diariamente nas câmaras de gás. O texto ainda cita Auschwitz.

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A carta era datada de 14 de dezembro e era endereçada ao secretário pessoal do papa, Robert Leiber. Dez dias depois, Pio 12 faria a alocução de 45 minutos chamada "o Santo Natal e a humanidade sofredora", na qual faz a alusão indireta ao massacre dos judeus.

Ou seja, o papa sabia de tudo. Ainda assim, ele nunca mais tocaria no tema de forma tão aberta ao longo de 19 anos de pontificado.

Ainda como cardeal Pacelli, ele havia sido o secretário de Estado do Vaticano no papado de Pio 11, que morreu às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Em 1933, Pio 11 assinou um acordo com a Alemanha, na esperança de proteger os católicos durante o regime de Adolf Hitler.

Mesmo assim, entre 1933 e 1939, Pacelli escreveu 55 denúncias ao Terceiro Reich. Pio 11 ainda publicou três encíclicas contra a onda totalitária que varria o mundo. Em 1937, a encíclica "Com Grande Ansiedade" era uma denúncia do nazismo, escrita em grande parte por Pacelli.

Pio 11 havia iniciado os trabalhos para a publicação de uma encíclica que denunciaria a incompatibilidade entre o cristianismo e o racismo. O documento já tinha até nome: Humani Generis Unitas (A Unidade da Raça Humana).

Mas ele acabaria morrendo e seu sucessor, Pio 12, abortou o projeto ao assumir o Vaticano, em 1939. O motivo: não provocar Mussolini e Hitler.

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Um ano depois de assumir o trono de Pedro, Pio 12 recebeu em seu gabinete o chefe da diplomacia nazista, Joachim von Ribbentrop. Naquele dia, o alemão se queixou da atitude do pontífice e o acusou de estar tomando o lado dos Aliados. Pio 12 respondeu lendo uma longa lista de crimes cometidos pelos nazistas.

Pessoas fiéis ao papa garantem que, ao longo dos anos, ele repassou informações aos governos aliados sobre o que seus bispos e cardeais informavam sobre os territórios ocupados pelos nazistas.

Mas, entre os Aliados, as queixas eram de que ele não havia sido explícito em condenar Hitler. Alas importantes de historiadores e vaticanistas também sustentam que o silêncio do Vaticano —ou pelo menos sua hesitação— diante do Holocausto é uma das marcas mais complicadas na história recente do cristianismo.

Oitenta anos depois, o debate sobre o silêncio e a cumplicidade diante de crimes volta a atormentar as lideranças mundiais. Muitas delas não perderam a ocasião de estar na inauguração da nova Catedral de Notre-Dame. Mas, ao mesmo tempo, mantiveram um silêncio atroz diante da destruição de igrejas históricas no território palestino.

O silêncio também foi denunciado pelo reverendo Munther Isaac, em Belém, o berço de Jesus. "O mundo não nos vê como iguais. Estamos atormentados pelo silêncio do mundo", disse.

Para ele, Gaza é hoje o "compasso moral da humanidade". "Se nosso cristianismo não está escandalizado com o que ocorre, há algo de errado com nossos valores cristãos", alertou.

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O pastor diz que, diante dos impérios, "Deus não se manteve em silêncio e mandou seu filho para estar ao lado dos mais vulneráveis". "Hoje, Jesus está em cada criança morta. Ele é a criança de Gaza. Jesus está sob os escombros. Ele renasceu sob ocupação, está com os refugiados", disse.

O reverendo ainda tem uma pergunta ao Ocidente, diante do que ele denuncia como cumplicidade.

"Nós palestinos vamos nos reconstruir, vamos nos reerguer. Mas e vocês?"

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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