Deixo de postar no X para estar do lado certo da história
Não tenho relevância alguma. Não movo as redes. Mas não aceitarei mais ser cúmplice de uma plataforma do ódio, de uma máquina de difusão de mentiras, de uma ameaça à democracia, de um instrumento de ruptura da sociedade e de uma instigadora da violência.
Por esses motivos, anuncio que deixo de postar na rede de Elon Musk.
O bilionário não ficará mais pobre e jamais notará minha decisão. Mas eu dormirei de consciência tranquila de que não faço parte de um perverso e engenhoso esquema de poder.
Por meses, sustentei que sair do X não resolveria. Afinal, teríamos de ocupar os espaços com a noção dos direitos humanos e valores humanísticos. Uma ilusão diante da estrutura dos algoritmos. Uma atitude ingênua que apenas chancela aqueles que sequestraram a ideia da liberdade de expressão para manipular o conceito e, assim, ter um canal privilegiado para usar a mentira como um instrumento de poder.
Nesta eleição nos EUA, vi como americanos estocaram armas, munição e latas de comida, temendo uma guerra civil. O motivo? A recusa de uma parte dos apoiadores de Donald Trump de aceitar a legitimidade das urnas. Claro, apenas em caso de uma derrota. Apoiadores que foram alimentados com a mentira de uma suposta fraude em especial pela plataforma de Musk.
As contas do aliado da extrema direita permitiram que a mentira tivesse um alcance de 2 bilhões de visualizações, apenas nas semanas que antecederam às eleições.
A história mostra que meios de comunicação podem ter um papel central em eventos trágicos. Em Ruanda, nas regiões do país onde havia um bom sinal para pegar a frequência de uma estação de rádio que promovia o ódio, o genocídio nos anos 90 foi mais intenso. Naqueles vilarejos onde o sinal era fraco, a população foi poupada da ira de seus vizinhos de outra etnia.
O genocídio não começa na primeira morte. Mas na difusão do ódio.
Em 2021, os trabalhadores da finada empresa Twitter pareciam saber da dimensão do poder que tinham. Nos dias seguintes ao ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro daquele ano, 300 funcionários da empresa enviaram uma carta à direção da empresa furiosos com o comportamento da plataforma de permitir que fossem usados para a difusão de uma proposta de golpe de estado.
"Apesar de nosso esforços para servir ao debate público, como um megafone de Trump, nós ajudamos a alimentar os eventos mortais de 6 de janeiro", apontaram os técnicos.
A carta foi entregue para os executivos no dia 8 de janeiro, uma data que acabaria sendo simbólica para nós brasileiros. "Precisamos aprender de nossos erros para evitar futuros danos", insistiram. "Temos um papel sem precedentes na sociedade civil e o mundo nos observa", alertaram. "Nossas decisões nesta semana vão cimentar nosso lugar na história, para o bem ou não", completaram.
Os funcionários pediam a suspensão completa de Trump das redes. Alguns deles ainda organizaram uma iniciativa para entrar em greve caso a direção da plataforma se recusasse a banir o então presidente.
Num primeiro momento, o republicano foi suspenso por 12 horas das redes. Mas, ao retornar, chamou os invasores de "grandes patriotas". Naquele momento, a empresa entendeu que a mensagem era um incentivo para novos atos de violência, potencialmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro.
Naquela tarde, os executivos decidiram que Trump teria de ser expulso do Twitter.
O que ninguém ali imaginaria é que, poucos meses depois, a empresa seria comprada por Musk por US$ 44 bilhões. 62 mil contas seriam restauradas, inclusive de neonazistas e de Trump. E, junto com elas, foram reabilitados o ódio e a violência.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberMas se os próprios funcionários admitiram que a história julgaria a empresa —e cada um deles— dependendo da postura que tomassem, como dormir tranquilo sabendo que fazemos parte disso hoje?
Quantos coringas morrerão ou matarão, alimentados pelas mentiras e ódio revestidos de "liberdade de expressão"?
Como eu disse, não tenho qualquer ilusão de meu papel nas redes. Mas o silêncio é covardia. Não agir é cumplicidade.
Assim, quando minhas netas e netos me perguntarem, um dia, onde eu estava quando os direitos, a civilização e as garantias democráticas estavam sendo ameaçados, eu poderei sorrir e responder orgulhosamente: do lado certo da história.