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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

André Mendonça livrou da suprema forca um 'ombro amigo' que fez rachadinha

Carolina Antunes/PR
Imagem: Carolina Antunes/PR

Colunista do UOL

13/11/2022 12h14

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Guindado por Bolsonaro a uma poltrona do Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que a Corte precisava de um ministro "terrivelmente evangélico", André Mendonça agradeceu com a toga a indicação do presidente e o apoio que recebeu das igrejas. Com um pedido de vista, tirou da forca o deputado federal bolsonarista Silas Câmara, encrencado num caso de rachadinha. O crime está na bica de prescrever. A perspectiva de punição será extinta em 2 de dezembro.

O descalabro deu as caras na sessão plenária do Supremo, na última quinta-feira. Relator do caso, Luís Roberto Barroso votou pela condenação de Silas a cinco anos e três meses de prisão. Revisor dos autos, Edson Fachin avalizou a pena. Mendonça pediu vista. Perplexos, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Rosa Weber decidiram antecipar seus votos. Seguiram Barroso. Num plenário de 11 votos, a tranca obteve cinco adeptos. Previa-se que Luiz Fux tornaria majoritária a opção pela cela.

Pastor presbiteriano, Mendonça revelou-se fiel a um "irmão", pois o réu Silas também é pastor evangélico. Provou sua fidelidade ao ex-chefe, pois a suspensão do julgamento inibiu a formação de jurisprudência contra a rachadinha, alavanca patrimonial da organização familiar chefiada por Bolsonaro. O ministro só não foi leal com a sociedade e com a legislação. No limite, traiu até o primeiro código de leis, aquele que Moisés trouxe à luz a mando de Deus.

Mendonça foi antissocial porque favoreceu amigos em detrimento do contribuinte que lhe paga o salário. Afrontou a legalidade ao não se declarar suspeito para atuar em processo estrelado por um réu que já lhe ofereceu o "ombro amigo". Ou ao fechar os olhos para provas abundantes da prática do crime de peculato. O ministro-pastor deu de ombros para as Tábuas de Moisés ao enganchar sua toga imaculada à ficha de um acusado de afrontar o sétimo mandamento: "Não roubarás."

Silas Câmara é filiado ao Republicanos, braço partidário da igreja Universal. Elegeu-se pelo Amazonas. Em dezembro do ano passado, antes de tomar posse no Supremo, André Mendonça voou para Manaus. Ali, participou de culto da Assembleia de Deus. Falando à congregação, expressou todo seu agradecimento "a um homem que vocês enviaram para Brasília". Contou que Silas, que conhecia havia três anos, se tornou "essencial" na sua ascensão ao Supremo. Antes e depois da indicação, "até a sabatina" no Senado.

"O pastor e deputado federal Silas Câmara foi um ombro amigo que Deus enviou através de vocês para que eu pudesse chegar aonde eu cheguei", derreteu-se André Mendonça, antes de se dirigir diretamente ao seu benfeitor, que estava no templo: "Então, meu muito obrigado, deputado pastor Silas Câmara."

No julgamento do Supremo, o agradecimento evoluiu do gogó para a prática. O pedido de vista de Mendonça gerou um debate constrangedor diante das câmeras da TV Justiça. Ao farejar o cheiro de queimado que exalava da suspensão do julgamento, a presidente do Supremo, Rosa Weber, pediu ao relator Barroso que refrescasse a memória dos colegas em relação à data da prescrição. Folheando o processo, Barroso confirmou: "Dia 2 de dezembro."

Abra-se, por oportuno, um parêntese para informar que a Procuradoria-Geral da República protocolou a denúncia contra Silas Câmara no Supremo em 2010. Repetindo: o processo corre na Suprema corte há 12 anos. Fecha parênteses.

Inicialmente, a rachadinha de Silas Câmara seria apreciada no plenário virtual, onde os ministros despejam seus votos por escrito. Iniciado no sistema eletrônico em 2020, o julgamento foi transferido para o plenário presencial graças a um pedido do ministro Nunes Marques, aquele que Bolsonaro trata como gorjeta —"10% de mim no Supremo".

Decorridos dois anos, Barroso expôs novamente o seu voto, dessa vez ao vivo. A pena de cinco anos e três meses seria cumprida em regime semiaberto. Nele, o condenado dorme em cana. Mas pode sair para trabalhar durante o dia. Silas Câmara perderia o mandato. E teria de devolver aos cofres públicos mais de R$ 1 milhão —o valor corrigido dos pedaços de contracheques que o deputado mordeu ao rachar a remuneração dos auxiliares enfiados na folha do seu gabinete.

Ao endossar o voto de Barroso, Alexandre de Moraes divergiu num único ponto. Argumentou que a cassação do mandato seria desnecessária, já que a lei permite aos presos regime semiaberto trabalhar fora da penitenciária. Ou seja: o pastor Silas Câmara, que acaba de ser premiado com o sétimo mandato federal por 125 mil eleitores amazonenses, daria expediente na Câmara durante o dia e dormiria no presídio brasiliense da Papuda.

Abespinhado com o pedido de vista, Fachin lembrou que a denúncia era de 2010. Mendonça alegou que acabara de tomar conhecimento do processo. Fachin não se deu por achado: "Houve tempo suficiente para essa providência. É lamentável que a Justiça assim proceda".

Antes do pedido de vista do colega, Nunes Marques expôs o único voto divergente até aquele momento. Soou paradoxal. Questionando a validade de evidências que os colegas consideraram sólidas e irrefutáveis, declarou que as provas deveriam ser anuladas. O que levaria à absolvição do deputado bolsonarista "por insuficiência de provas seguras".

Uma das alegações de André Mendonça para suspender o julgamento foi tão esdrúxula que pareceu ter sido mencionada apenas para obrigar os colegas a usarem a palavra "esdrúxula". O que inibe qualquer reação mais respeitosa. Ele argumentou que o pedido de vista se impôs porque seria necessário verificar se o réu não teria direito a firmar com a Procuradoria um Acordo de Não Persecução Penal. Algo poderia livrá-lo da cana.

Mendonça chegou a mencionar encontro que os ministros do Supremo tiveram na véspera com Lula. Durante a reunião, disse ele, falou-se sobre "políticas de desencarceramento e redução da litigiosidade em casos penais". Coube a Alexandre de Moraes iluminar o ridículo escondido atrás do argumento.

Xandão realçou que, pela lei, os acordos de não persecução penal só podem ser celebrados em fase anterior ao julgamento, quando o réu confessa o crime. Não foi o caso de Silas Câmara. A despeito da solidez de provas testemunhais e documentais, o deputado sempre se declarou inocente.

Confrontada com extratos bancários que expõem os valores depositados por servidores na conta do deputado, a defesa alegou que as cifras eram referentes à devolução de empréstimos pessoais e ao pagamento de aluguéis de imóveis pertencentes do parlamentar.

Mal comparando, essa linha de defesa adotada pelos advogados de Silas Câmara é semelhante àquela que foi usada por Bolsonaro quando tentou justificar depósitos feitos na conta da primeira-dama Michelle por Fabrício Queiroz. Alegou que o operador de rachadinhas do clã presidencial estava apenas devolvendo empréstimos pessoais.

Bolsonaro considera-se um legítimo representante dos patriotas de bem. Pois todos os devotos genuínos da pátria, leais aos valores republicanos, deveriam pressionar André Mendonça para que devolva imediatamente ao plenário do Supremo o processo contra o "irmão" bolsonarista antes da prescrição. Não se deve perder de vista que, nesse balé de dromedários, Silas Câmara é uma corcova secundária.

Como se sabe, são muitos os processos judicializados e as investigações em curso que roçam o presidente, sua família e seus apoiadores. Num país em que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que levar poderosos ao reino dos cárceres, não convém aceitar passivamente a atuação de togas que se dispõem a litigar a favor de suspeitos, inclusive nos autos.