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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gilmar tem razão: convém investigar a Lava Jato, 'com o Supremo, com tudo'

Nelson Jr./SCO/STF
Imagem: Nelson Jr./SCO/STF

Colunista do UOL

11/05/2023 12h19

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O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes voltou a criticar os métodos da Lava Jato, dessa vez em sessão da Segunda Turma da Corte. Defendeu a realização de um inquérito para esquadrinhar o que sucedeu em Curitiba. O decano tem razão. É imperioso exumar a falecida operação —com o Supremo, com Gilmar, com tudo.

De acordo com a percepção de Gilmar, a República de Curitiba, composta por uma "gente tão chinfrim", recorreu à "prática de tortura usando o poder do Estado". Daí a necessidade do inquérito. "As pessoas só eram soltas depois de confessarem", ralhou Gilmar. "Isso é uma vergonha, coisa de pervertidos."

A Vaza Jato expôs as perversões processuais e políticas de Sergio Moro e Cia., hoje muito nítidas. Mas faltou um hacker nos subterrâneos de magistrados como Gilmar. Uma boa investigação revelaria que o ministro nem sempre foi um crítico da Lava Jato. Ele já esteve do lado dos pervertidos.

Gilmar ajudou a compor a maioria de 6 a 5 que aprovou no Supremo a prisão de condenados na segunda instância. Pronunciou um dos mais eloquentes votos do julgamento, ocorrido em outubro de 2016. Disse, por exemplo, que a cana na segunda instância aproximaria o Brasil do mundo civilizado.

Gilmar chegou a ironizar a qualificação dos novos hóspedes do sistema prisional. Disse que a presença de "ilustres visitantes" melhoraria as cadeias. Realçou que já não havia "banho frio" na carceragem da Polícia Federal em Curitiba. "Agora, há até chuveiro elétrico", celebrou.

A aversão de Gilmar à Lava Jato e suas "prisões alongadas" é anterior à Vaza Jato. O submundo dos celulares de Sergio Moro e Deltan Dallagnol ainda não havia sido invadido por um hacker quando Gilmar começou a torcer o nariz para Curitiba. O distanciamento de Gilmar cresceu na proporção direta da aproximação das investigações de personagens perscrutados em outras praças.

Gilmar foi se afastando à medida que as investigações realizadas fora de Curitiba roçavam suspeitos do PSDB e do MDB. Gente como Aécio Neves, José Serra e Michel Temer, amigos de Gilmar. O distanciamento consolidou-se em 2018, quando Gilmar desembarcou da prisão em segunda instância e se tornou um defensor voraz do direito dos condenados de recorrer em liberdade até a última instância.

Dois anos antes, aquele Gilmar de 2016 dizia que "praticamente não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado." Sua visão era mais punitivista: "Uma coisa é ter alguém como investigado. Outra coisa é ter alguém como denunciado, com denúncia recebida. Outra coisa é ter alguém com condenação. E agora com condenação em segundo grau! O sistema estabelece uma progressiva diminuição da ideia de presunção de inocência. Essa garantia institucional vai esmaecendo."

Nessa época, Gilmar sustentava que juízes de primeiro grau e tribunais de segunda instância poderiam cometer equívocos. Mas ponderava: "Não vamos esquecer: o sistema permite correção. Permite até o impedimento do início da execução da pena, com obtenção de liminar em habeas corpus."

Antes da meia-volta, Gilmar soava mais preocupado com os presos pretos e pobres. Havia na ocasião cerca de 220 mil presidiários esquecidos nos fundões dos presídios sem nenhum julgamento. "Nós sabemos que a prisão provisória no Brasil pode ser das mais longas do mundo", declarou o Gilmar de 2016, antes de içar da memória duas passagens que testemunhara como presidente do Conselho Nacional de Justiça. "Nós encontramos um indivíduo no Espírito Santo preso provisoriamente há 11 anos. [...] Encontramos em seguida um sujeito esquecido nas masmorras do Ceará há 14 anos."

Hoje, Gilmar critica a promiscuidade do relacionamento entre Moro e os procuradores. Coisa de fato inadmissível. Uma apuração rigorosa talvez conseguisse explicar por que Gilmar, tão severo no juízo da atuação de terceiros, se exime de fazer outros tipos de exames. A começar pelo mais difícil: o autoexame.

Não há de ser por falta de material. Gilmar jamais se constrangeu com os telefonemas que trocou com investigados amigos. Algumas ligações estão disponíveis na internet. Nunca achou inadequado almoçar e jantar com encrencados em inquéritos no Supremo. Hoje, maldiz a heterodoxia da Lava Jato. Sob Dilma, serviu-se de uma transgressão de Moro para brecar a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil.

Então titular da 13ª Vara de Curitiba, Moro levantou em março de 2016 o sigilo do célebre grampo em que Dilma avisa a Lula que o "Bessias" (hoje o Messias, advogado-geral da União) estava a caminho, levando o ato de sua nomeação para o ministério.

Gilmar sustou a posse de Lula com uma liminar escorada nos áudios divulgados ilegalmente por Moro. Valeu-se de um raciocínio tortuoso. Sustentou que o grampo tornara-se secundário depois que Dilma e Lula reconheceram em manifestações públicas a autenticidade do diálogo.

A nova erupção de Gilmar contra a operação anticorrupção foi estimulada pela leitura do livro de memórias escrito pelo empresário Emílio Odebrecht, dono da companhia mais varejada pela Lava Jato. O ministro citou a "tortura" de Curitiba ao evocar o testemunho do pai de Marcelo Odebrecht, o executivo que delatou a contragosto, empurrado por Emílio, a roubalheira na Petrobras e em todas as adjacências.

O que Gilmar não mencionou é que foi graças às delações de Emílio, do filho e dos seus executivos que o país ficou sabendo, por exemplo, que a Odebrecht mantinha em seu organograma um departamento encarregado de comprar políticos com verbas roubadas do Estado. Coisa suprapartidária, confessada e documentada. Devolveram-se bilhões ao Estado.

O escracho revelou-se tão grande que muitos se perguntam até hoje por que a Odebrecht não fez o seu próprio governo em vez de comprar o dos outros. Um governo só da Odebrecht teria proporcionado muitas vantagens. Todos os empreendimentos públicos, incluindo os de estatais como a Petrobras, seriam da Odebrecht. O que eliminaria as licitações, a corrupção e a necessidade de realizar operações anticorrupção. Ou investigações sobre as operações anticorrupção —com o Supremo, com o Gilmar, com tudo.