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Paulo Sampaio

Adoraria bater panela, mas tenho vizinhos milicianos, diz Lucélia Santos

Lucélia Santos - Divulgação/TV Cultura
Lucélia Santos Imagem: Divulgação/TV Cultura

Colunista do UOL

29/03/2020 04h00

Depois de uma temporada de oito meses em Portugal, gravando uma novela na TVI, a atriz Lucélia Santos, 62 anos, desembarcou no Brasil pouco antes de a OMS (Organização Mundial de Saúde) classificar a disseminação do covid-19 como pandemia.

Desde então, ela afirma obedecer rigorosamente a quarentena recomendada por autoridades de saúde do mundo todo, e critica duramente a atitude do presidente Jair Bolsonaro, que já se referiu à doença que mata milhares de pessoas ao redor do planeta como "gripezinha" e "resfriadinho" e defendeu que o país deveria "voltar à normalidade".

"Não temos governança, já está claro, e isso pode ser devastador. Temo principalmente pelos pobres e sem recursos. Sob a batuta de um maluco, pode morrer todo mundo", acredita ela.

Para salvar o povo da miséria na pandemia, Lucélia acha que o governo deveria contar com os recursos de quem tem muito dinheiro. "É preciso pensar como seria isso. Taxação de grandes fortunas, por exemplo, ou através de um parcela dos lucros dos banqueiros."

Na entrevista abaixo, ela fala de panelaços, Regina Duarte, TV Globo, audiência e mídias sociais.

UOL — Quando você saiu de Portugal, a gripe já havia tomado dimensão global?

Lucélia — Já havia se espalhado pela Europa, estava aterrorizando a Itália e logo a seguir tomou conta de Espanha. Cheguei ao Brasil no dia 7 de março. Dia 11 foi decretada pandemia pela Organização Mundial de Saúde.

UOL — A pandemia levou a saúde pública (até em países mais ricos) ao colapso; trancou as pessoas em casa e já mostra grande impacto nas finanças até de quem vive com conforto. Alguns tomam a paralisação do planeta como uma espécie de alerta da natureza à humanidade, em função do desrespeito com o clima, a falência das relações interpessoais e o desprezo pelas disparidades sociais.

Lucélia — Concordo com tudo isso. Creio que teremos de pensar uma nova ordem econômica mundial, baseada em novos valores, e criar uma sociedade de consumo do essencial, sem valor agregado.

UOL — No Brasil, a pandemia agravou uma crise institucional séria; o presidente chegou insuflar manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF. Agora, Bolsonaro desautoriza ministros, ataca governadores e xinga a imprensa. A população (incluindo eleitores arrependidos de Bolsonaro) reage com panelaços diários. Você bateu panela?

Lucélia — Eu adoraria bater panela, mas moro num condomínio cheio de milicianos aqui na Barra (da Tijuca, Rio de Janeiro). Não é por medo, mas porque eu seria a única paneleira aqui. Então, acho mais estratégico ficar quietinha. Tenho falado pelas redes sociais.

Gostaria de observar, nesse ponto, que a crise política já existia antes da chegada do vírus ao Brasil. O Bolsonaro querer fechar o Congresso, desrespeitar o supremo e desautorizar a democracia foi, e tem sido , uma atitude de desespero político. Reparou que ele não falou mais no assunto com o crescimento da pandemia no Brasil? Com os panelaços? Está ficando completamente isolado, porque a postura dele em relação à disseminação do vírus é completamente equivocada, absurda. Os Estados Unidos não quiseram adotar imediatamente a quarentena, e olha como está hoje a situação deles.

Penso ainda que o fracasso econômico desse governo já estava declarado. Nos últimos meses, o dólar disparou de uma forma assustadora, a bolsa despencou e o risco Brasil agora é imenso. Isso tudo vai contra as expectativas geradas na campanha de Bolsonaro a presidente. Ele prometeu crescimento econômico, baixa inflação e aumento de emprego para todos. Nada disso aconteceu.

UOL — Muitos apoiadores do presidente, incluindo o próprio filho dele, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), acreditam que haja ligação entre o regime comunista chinês e a pandemia. O deputado afirmou que a China preferiu "esconder algo grave" a se expor. Chegou a comparar o acidente na usina nuclear de Chernobyl (na Ucrânia, em 1986) ao coronavírus, o que criou uma crise diplomática.

Lucélia — Tanto Bolsonaro quanto seus filhos têm dificuldade em desenvolver um pensamento lógico. Não conseguem quase nunca. O que eles afirmam não deve ser considerado, nem sequer observado. São malucos! Caso sério.

UOL — No passado, houve a H1N1, que foi bem grave, mas não tomou a proporção épica do novo covid-19. Informa-se que o vírus, desta vez, é mais agressivo. Como você está vivendo a quarentena?

Lucélia — Da maneira mais rigorosa possível. Com muita disciplina. É o único jeito de evitar a contaminação. Observo atentamente, todos os dias, os boletins do ministério da Saúde no Brasil e em todo mundo, por isso posso afirmar com tranquilidade que a coisa certa a se fazer nesse momento é ficar em casa. Praticar o isolamento social total.

UOL — Considerado guru dos Bolsonaro e seguido cegamente por muitos apoiadores do presidente, o "influenciador" Olavo de Carvalho postou um vídeo em que afirma que não há nenhum caso confirmado de morte por coronavírus no mundo. Depois de usar uma matemática própria, Carvalho disse que a epidemia seria "a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana".

Lucélia — Eu me recuso a gastar o mínimo da minha energia com esse senhor. É um delirante. Todos deveriam retirar esse tipo de gente das suas redes sociais. Ele não serve nem para autor de obra de ficção.

UOL — O governador do Rio, Wilson Witzel, condenou a mudança de tom do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que a princípio recomendou severamente a quarentena e, depois, para se alinhar com o presidente, relativizou medidas rígidas de restrição de circulação. Falou em racionalidade. Witzel disse também que Mandetta "não pode mudar de opinião e virar Regina Duarte" (a secretária da Cultura disse que "isso vai acabar com a área cultural do país e o remédio está sendo amargo demais").

Lucélia — O ministro da Saúde vinha fazendo um trabalho responsável, confiável, até que deu um tiro no próprio pé ao mudar de opinião no meio de uma entrevista. Ele está entre o rigor profissional, a consciência do que deve ser feito, e a pressão política do Bolsonaro. O ministro sabe que é criminoso estimular as pessoas a sairem de casa.

Com relação ao setor cultural, eu não quero nem comentar a declaração da Regina Duarte. Ela precisa apenas lembrar que já tem 72 anos, e portanto está na turma de risco.

UOL — Como você recebeu a nomeação dela para a pasta da Cultura?

Lucélia — A Regina Duarte é uma excelente atriz, e uma pessoa por quem eu sempre nutri grande carinho e afeto. Nos últimos anos, todavia, ela se dedicou muito mais a cuidar do gado (não é uma ironia), de suas fazendas e do agronegócio, do que à arte, à cultura e à própria profissão de atriz.

O Bolsonaro precisava de alguém com carisma para limpar a M que o ex secretário nazista dele fez, porque fez muita M.! Regina foi, portanto, uma boa escolha. Ela aceitou porque apoia as ideias de Bolsonaro, já havia ido pra avenida Paulista, na época da campanha, gritar que tem mais é que invadir a Amazônia e asfaltar tudo. Que tem índio demais pra pouca terra. Não quero nem comentar, isso pra mim foi o mais grave. Acredito que ela fez muito mal em aceitar o cargo porque não vai dar conta da situação, e a história não perdoa.

UOL — Bolsonaro ataca diuturnamente a TV Globo e a Folha de S.Paulo, diz que ambas inventam notícias para derrubar seu governo. No passado, a TV Globo era tida como uma emissora de direita; Lula até hoje a acusa de persegui-lo. Não parece incongruente que dois chefes de estado de bases tão diferentes se considerem perseguidos pela mesma emissora?

Lucélia -- O que mostra no mínimo uma inteligência prática da TV Globo ao fazer suas escolhas, ou não ?

UOL -- Em uma entrevista feita pela coluna com a atriz Maria Zilda, em agosto, ela contou que um amigo que participava de uma reunião de diretores de novela da TV Globo disse a ela que três deles estavam em dúvida sobre a escalação de duas atrizes, até que um disse: "Escolhe essa aqui que dá mais clique." Você acha que a TV se rendeu ao advento das redes sociais e que isso levou a outro tipo de relação com a qualidade e com a audiência?

Lucélia — Qualidade e audiência há muito tempo andam como as falas dos Bolsonaros. O tico não fala com o teco.

Evidentemente, as novas mídias (todas elas), mudaram muito e continuarão a mudar os hábitos dos consumidores. Isso não vai ter fim com o surgimento de novas plataformas. Há que se adaptar aos novos mercados.